![]() Meditações metafísicasMEDITAÇÃO PRIMEIRA - DAS COISAS QUE SE PODEM COLOCAR EM DÚVIDA
1. Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências. Mas, parecendo-me ser muito grande essa empresa, aguardei atingir uma idade que fosse tão madura que não pudesse esperar outra após ela, na qual eu estivesse mais apto para executá-la; o que me fez diferi-la por tão longo tempo que doravante acreditaria cometer uma falta se empregasse ainda em deliberar o tempo que me resta para agir.
2. Agora, pois que meu espírito está livre de todos os cuidados, e que consegui um repouso assegurado numa pacífica solidão, aplicar-me-ei seriamente e com liberdade em destruir em geral todas as minhas antigas opiniões. Ora, não será necessário, para alcançar esse desígnio, provar que todas elas são falsas, o que talvez nunca levasse a cabo; mas, uma vez que a razão já me persuade de que não devo menos cuidadosamente impedir-me de dar crédito às coisas que não são inteiramente certas e indubitáveis, do que às que nos parecem manifestamente ser falsas, o menor motivo de dúvida que eu nelas encontrar bastará para me levar a rejeitar todas. E, para isso, não é necessário que examine cada uma em particular, o que seria um trabalho infinito; mas, visto que a ruína dos alicerces carrega necessariamente consigo todo o resto do edifício, dedicar-me-ei inicialmente aos princípios sobre os quais todas as minhas antigas opiniões estavam apoiadas.
3. Tudo o que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos: ora, experimentei algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez.
4. Mas, ainda que os sentido nos enganem às vezes, no que se refere às coisas pouco sensíveis e muito distantes, encontramos talvez muitas outras, das quais não se pode razoavelmente duvidar, embora as conhecêssemos por intermédio deles: por exemplo, que eu esteja aqui, sentado junto ao fogo, vestido com um chambre, tendo este papel entre as mãos e outras coisas desta natureza. E como poderia eu negar que estas mãos e este corpo sejam meus? A não ser, talvez, que eu me compare e a esses insensatos, cujo cérebro está de tal modo perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile que constantemente asseguram que são reis quando são muito pobres; que estão vestidos de ouro e de púrpura quando estão inteiramente nus; ou imaginam ser cântaros ou ter um corpo de vidro. Mas quê? São loucos e eu não seria menos extravagante se me guiasse por seus exemplos.
5. Todavia, devo aqui considerar que sou homem e, por conseguinte, que tenho o costume de dormir e de representar, em meus sonhos, as mesmas coisas, ou algumas vezes menos verossímeis, que esses insensatos em vigília. Qualntas vezes ocorreu-me sonhar, durante a noite, que estava neste lugar, que estava vestido, que estava junto ao fogo, embora estivesse inteiramente nu dentro de meu leito? Parece-me agora que não é com olhos adormecidos que contemplo este papel; que esta cabeça que eu mexo não está dormente; que é com desígnio e propósito deliberado que estendo esta mão e que a sinto: o que ocorre no sono não parece ser tão claro nem tão distinto quanto tudo isso. Mas, pensando cuidadosamente nisso, lembro-me de ter sido muitas vezes enganado, quando dormia, por semelhantes ilusões. E, detendo-me neste pensamento, vejo tão manifestamente que não há quaisquer indícios concludentes, nem marcas assaz certas por onde se possa distinguir nitidamente a vigília do sono, que me sinto inteiramente pasmado: e meu pasmo é tal que é quase capaz de me persuadir de que estou dormindo.
6. Suponhamos, pois, agora, que estamos adormecidos e que todas essas particularidades, a saber, que abrimos os olhos, que mexemos a cabeça, que estendemos as mãos, e coisas semelhantes, não passam de falsas ilusões; e pensemos que talvez nossas mãos, assim como todo o nosso corpo, não são tais como os vemos. Todavia, é preciso ao menos confessar que as coisas que nos são representadas durante o sono são como quadros e pinturas, que não podem ser formados senão à semelhança de algo real e verdadeiro; e que assim, pelo menos, essas coisas gerais, a saber, olhos, cabeça, mãos e todo o resto do corpo, não são coisas imaginárias, mas verdadeiras e existentes. Pois, na verdade, os pintores, mesmo quando se empenham com o maior artifício em representar sereias e sátiros por formas estranhas e extraordinárias, não lhes podem, todavia, atribuir formas e naturezas inteiramente novas, mas apenas fazem certas mistura e composição dos membros de diversos animais; ou então, se porventura sua imaginação for assaz extravagante para inventar algo de novo, que jamais tenhamos visto coisa semelhante, e que assim sua obra no represente uma coisa puramente fictícia e absolutamente falsa, certamente ao menos as cores com que eles a compõem devem ser verdadeiras.
7. E pela mesma razão, ainda que essas coisas gerais, a saber, olhos, cabeça, mãos e outras semelhantes, possam ser imaginárias, é preciso, todavia, confessar que há coisas ainda mais simples e mais universais, que são verdadeiras e existentes; de cuja mistura, nem mais nem menos do que da mistura de algumas cores verdadeiras, são formadas todas essas imagens das coisas que residem em nosso pensamento, quer verdadeiras e reais, quer fictícias e fantásticas. Desse gênero de coisas é a natureza corpórea em geral, e sua extensão; juntamente com a figura das coisas extensas, sua quantidade ou grandeza, e seu número; como também o lugar em que estão, o tempo que mede sua duração e outras coisas semelhantes.
8. Eis por que, talvez, daí nós não concluamos mal se dissermos que a Física, a Astronomia, a Medicina e todas as outras ciências dependentes da consideração das coisas compostas são muito duvidosas e incertas; mas que a Aritmética, a Geometria e as outras ciências desta natureza, que não tratam senão de coisas muito simples e muito gerais, sem cuidarem muito em se elas existem ou não na natureza, contêm alguma coisa de certo e indubitável. Pois, quer que esteja acordado, quer esteja dormindo, dois mais três formarão sempre o número cinco e o quadrado nunca terá mais do que quatro lados; e não parece possível que verdades tão patentes possam ser suspeitas de algumas falsidades ou incerteza.
9. Todavia, há muito que tenho no meu espírito certa opinião de que há um Deus que tudo pode e por quem fui criado e produzido tal como sou. Ora, quem me poderá assegurar que esse Deus não tenha feito com que não haja nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo extenso, nenhuma figura, nenhuma grandeza, nenhum lugar e que, não obstante, eu tenha os sentimentos de todas essas coisas e que tudo isso não me pareça existir de maneira diferente daquela que eu vejo? E, mesmo, como julgo que algumas vezes os outros se enganam até nas coisas que eles acreditam saber com maior certeza, pode ocorrer que Deus tenha desejado que eu me engane todas as vezes em que faço a adição de dois mais três, ou em que enumero os lados de um quadrado, ou em que julgo alguma coisa ainda mais fácil, se é que se pode imaginar algo mais fácil do que isso. Mas pode ser que Deus não tenha querido que eu seja decepcionado desta maneira, pois ele é considerado soberanamente bom. Todavia, se repugnasse à sua bondade fazer- me de tal modo que eu me enganasse sempre, pareceria também lhe ser contrário permitir que eu me engane algumas vezes e, no entanto, não posso duvidar de que ele mo permita.
10. Haverá talvez aqui pessoas que preferirão negar a existência de um Deus tão poderoso a acreditar que todas as outras coisas são incertas. Mas, não lhes resistamos no momento e suponhamos, em favor delas, que tudo quanto aqui é dito de um Deus seja uma fábula. Todavia, de qualquer maneira que suponham ter eu chegado ao estado e ao ser que possuo, quer o atribuam a algum destino ou fatalidade, quer o refiram ao acaso, quer queiram que isto ocorra por uma contínua série e conexão das coisas, é certo que, já que falhar e enganar-se é uma espécie de imperfeição, quanto menos poderoso for o autor a que atribuírem minha origem tanto mais será provável que eu seja de tal modo imperfeito que me engane sempre. Razões às quais nada tenho a responder, mas sou obrigado a confessar que, de todas as opiniões que recebi outrora em minha crença como verdadeiras, não há nenhuma da qual não possa duvidar atualmente, não por alguma inconsideração ou leviandade, mas por razões muito fortes e maduramente consideradas: de sorte que é necessário que interrompa e suspenda Doravante meu juízo sobre tais pensamentos, e que não mais lhes dê crédito, como faria com as coisas que me perecem evidentemente falsas, se desejo encontrar algo de constante e de seguro nas ciências.
11. Mas não basta ter feito tais considerações, é preciso ainda que cuide de lembrar-me delas; pois essas antigas e ordinárias opiniões ainda me voltam amiúde ao pensamento, dando-lhes a longa e familiar convivência que tiveram comigo o direito de ocupar meu espírito mau grado meu e de tornarem-se quase que senhoras de minha crença. E jamais perderei o costume de aquiescer a isso e de confiar nelas, enquanto as considerar como são efetivamente, ou seja, como duvidosas de alguma maneira, como acabamos de mostrar, e todavia muito prováveis, de sorte que se tem muito mais razão em acreditar nelas do que em negá-las. Eis por que penso que me utilizarei delas mais prudentemente se, tomando partido contrário, empregar todos os meus cuidados em enganar-me a mim mesmo, fingindo que todos esses pensamentos são falsos e imaginários; até que, tendo de tal modo sopesado meus prejuízos, eles não possam inclinar minha opinião mais para um lado do que para o outro, e meu juízo não mais seja doravante dominado por maus usos e desviado do reto caminho que pode conduzi-lo ao conhecimento da verdade. Pois estou seguro de que, apesar disso, não pode haver perigo nem erro nesta via e de que não poderia hoje aceder demasiado à minha desconfiança, posto que não se trata no momento de agir, mas somente de meditar e de conhecer.
12. Suporei, pois, que há não um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da verdade, mas certo gênio maligno, não menos ardiloso e enganador do que poderoso, que empregou toda a sua indústria em enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e enganos de que ele se serve para surpreender minha credulidade. Considerar-me-ei a mim mesmo absolutamente desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado da falsa crença de ter todas essas coisas. Permanecerei obstinadamente apegado a esse pensamento; e se, por esse meio, não está em meu poder chegar ao conhecimento de qualquer verdade, ao menos está ao meu alcance suspender meu juízo. Eis por que cuidarei zelosamente de não receber em minha crença nenhuma falsidade, e prepararei tão bem meu espírito a todos os ardis desse grande enganador que, por poderoso e ardiloso que seja, nunca poderá impor-me algo.
13. Mas esse desígnio é árduo e trabalhoso e certa preguiça arrasta-me insensivelmente para o ritmo de minha vida ordinária. E, assim como um escravo que gozava de uma liberdade imaginária, quando começa a suspeitar de que sua liberdade é apenas um sonho, teme ser despertado e conspira com essas ilusões agradáveis para ser mais longamente enganado, assim eu reincido insensivelmente por mim mesmo em minhas antigas opiniões e evito despertar dessa sonolência, de medo de que as vigílias laboriosas que se sucederiam à tranquilidade de tal repouso, em vez de me propiciarem alguma luz ou alguma clareza no conhecimento da verdade, não fossem suficientes para esclarecer as trevas das dificuldades que acabam de ser agitadas.
Ao final da PRIMEIRA MEDITAÇÃO sobre a Filosofia Primeira", não apresenta uma conclusão definitiva. Em vez disso, ela serve como um ponto de partida para a busca da verdade, questionando todas as crenças e conhecimentos estabelecidos.
MEDITAÇÃO SEGUNDA - DA NATUREZA DO ESPÍRITO HUMANO; E DE COMO ELE É MAIS FÁCILDE CONHECER DO Q UE O CORPO.
1. A Meditação que fiz ontem encheu-me o espírito de tantas dúvidas, que doravante não está mais em meu alcance esquecê-las. E, no entanto, não vejo de que maneira poderia resolvê-las; e, como se de súbito tivesse caído em águas muito profundas, estou de tal modo surpreso que não posso nem firmar meus pés no fundo, nem nadar para me manter à tona. Esforçar-me-ei, não obstante, e seguirei novamente a mesma via que trilhei ontem, afastando-me de tudo em que poderia imaginar a menor dúvida, da mesma maneira como se eu soubesse que isto fosse absolutamente falso; e continuarei sempre nesse caminho até que tenha encontrado algo de certo, ou, pelo menos, se outra coisa não me for possível, até que tenha aprendido certamente que não há nada no mundo de certo.
2. Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo para outra parte, não pedia nada mais exceto um ponto que fosse fixo e seguro. Assim, terei o direito de conceber altas esperanças, se for bastante feliz para encontrar somente uma coisa que seja certa e indubitável.
3. Suponho, portanto, que todas as coisas que vejo são falsas; persuado-me de que Jamais existiu de tudo quanto minha memória repleta de mentiras me representa; penso não possuir nenhum sentido; creio que o corpo, a figura, a extensão, o movimento e o lugar são apenas ficções de meu espírito. O que poderá, pois, ser considerado verdadeiro? Talvez nenhuma outra coisa a não ser que nada há no mundo de certo.
4. Mas que sei eu, se não há nenhuma outra coisa diferente das que acabo de divulgar incertas, da qual não se possa ter a menor dúvida? Não haverá algum Deus, ou alguma outra potência, que me ponha no espírito tais pensamentos? Isso não é necessário; pois talvez seja eu capaz de produzi-los por mim mesmo. Eu então, pelo menos, não serei alguma coisa? Mas já neguei que tivesse qualquer sentido ou qualquer corpo. Hesito no entanto, pois que se segue daí? Serei de tal modo dependente do corpo e dos sentidos que não possa existir sem eles? Mas eu me persuadi de que nada existia no mundo, que não havia nenhum céu, nenhuma terra, espíritos alguns, nem corpos alguns; não me persuadi também, portanto, de que eu não existia? Certamente não, eu existia sem dúvida, se é que eu me persuadi, ou, apenas, pensei alguma coisa. Mas há algum, não sei qual, enganador mui poderoso e mui ardiloso que emprega toda a sua indústria em enganar-me sempre. Não há, pois, dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito.
5. Mas não conheço ainda bastante claramente o que sou, eu que estou certo de que sou; de sorte que doravante é preciso que eu atente com todo cuidado, para não tomar imprudentemente alguma outra coisa por mim, e assim para não me equivocar neste conhecimento que afirmo ser mais certo e mais evidente do que todos os que tive até agora.
6. Eis por que considerarei de novo o que acreditava ser, antes de me empenhar nestes últimos pensamentos; e de minhas antigas opiniões suprimirei tudo o que pode ser combatido pelas razões que aleguei há pouco, de sorte que permaneça apenas precisamente o que é de todo indubitável. O que, pois, acreditava eu ser até aqui? Sem dificuldade, pensei que era um homem. Mas que é um homem? Direi que é um animal racional? Certamente não: pois seria necessário em seguida pesquisar o que é animal e o que é racional e assim, de uma só questão, cairíamos insensivelmente numa infinidade de outras mais difíceis e embaraçosas, e eu não quereria abusar do pouco tempo e lazer que me resta empregando-o em deslindar semelhantes sutilezas. Mas, antes, deter-me-ei em considerar aqui os pensamentos que anteriormente nasciam por si mesmos em meu espírito e que eram inspirados apenas por minha natureza, quando me aplicava à consideração de meu ser. Considerava-me, inicialmente, como provido de rosto, mãos, braços e toda essa máquina composta de ossos e carne, tal como ela aparece em um cadáver, a qual eu designava pelo nome de corpo. Considerava, além disso, que me alimentava, que caminhava, que sentia e que pensava e relacionava todas essas ações à alma; mas não me detinha em pensar em que consistia essa alma, ou, se o fazia, imaginava que era algo extremamente raro e sutil, como um vento, uma flama ou um ar muito tênue, que estava insinuado e disseminado nas minhas partes mais grosseiras. No que se referia ao corpo, não duvidava de maneira alguma de sua natureza; pois pensava conhecê-la mui distintamente e, se quisesse explicá-la segundo as noções que dela tinha, tê-la-ia descrito desta maneira: por corpo entendo tudo o que pode ser limitado por alguma figura; que pode ser compreendido em qualquer lugar e preencher um espaço de tal sorte que todo outro corpo dele seja excluído; que pode ser sentido ou pelo tato, ou pela visão, ou pela audição, ou pelo olfato; que pode ser movido de muitas maneiras, não por si mesmo, mas por algo de alheio pelo qual seja tocado e do qual receba a impressão. Pois não acreditava de modo algum que se devesse atribuir à natureza corpórea vantagens como ter de si o poder de mover-se, de sentir e de pensar; ao contrário, espantava-me antes ao ver que semelhantes faculdades se encontravam em certos corpos.
7. Mas eu, o que sou eu, agora que suponho que há alguém que é extremamente poderoso e, se ouso dizê-lo, malicioso e ardiloso, que emprega todas as suas forças e toda a sua indústria em enganar-me? Posso estar certo de possuir a menor de todas as coisas que atribuí há pouco à natureza corpórea? Detenho-me em pensar nisto com atenção, passo e repasso todas essas coisas em meu espírito, e não encontro nenhuma que possa dizer que existia em mim. Não é necessário que me demore a enumerá-las. Passemos, pois, aos atributos da alma e vejamos se há alguns que existam em mim. Os primeiros são alimentar-me e caminhar; mas, se é verdade que não possuo corpo algum, é verdade também que não posso nem caminhar nem alimentar-me. Outro é sentir; mas não se pode também sentir sem o corpo; além do que, pensei sentir outrora muitas coisas, durante o sono, as quais reconheci, ao despertar, não ter sentido efetivamente. Outro é pensar; e verifico aqui que o pensamento é um atributo que me pertence; só ele não pode ser separado de mim. Eu sou, eu existo: isto é certo; mas por quanto tempo? A saber, por todo o tempo em que eu penso; pois poderia, talvez, ocorrer que, se eu deixasse de pensar, deixaria ao mesmo tempo de ser ou de existir. Nada admito agora que não seja necessariamente verdadeiro: nada sou, pois, falando precisamente, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um entendimento ou uma razão, que são termos cuja significação me era anteriormente desconhecida. Ora, eu sou uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente; mas que coisa? Já o disse: uma coisa que pensa. E que mais? Excitarei ainda minha imaginação para procurar saber se não sou algo mais. Eu não sou essa reunião de membros que se chama o corpo humano; não sou um ar tênue e penetrante, disseminado por todos esses membros; não sou um vento, um sopro, um vapor, nem algo que posso fingir e imaginar, posto que supus que tudo isso não era nada e que, sem mudar essa suposição, verifico que não deixo de estar seguro de que sou alguma coisa.
8.Mas também pode ocorrer que essas mesmas coisas, que suponho não existirem, já que me são desconhecidas, não sejam efetivamente diferentes de mim, que eu conheço? Nada sei a respeito; não o discuto atualmente, não posso dar meu juízo senão a coisas que me são conhecidas: reconheci que eu era, e procuro o que sou, eu que reconheci ser. Ora, é muito certo que essa noção e conhecimento de mim mesmo, assim precisamente tomada, não depende em nada das coisas cuja existência não me é ainda conhecida; nem, por conseguinte, e com mais razão de nenhuma daquelas que são fingidas e inventadas pela imaginação. E mesmo esses termos fingir e imaginar advertem-me de meu erro; pois eu fingiria efetivamente se imaginasse ser alguma coisa, posto que imaginar nada mais é do que contemplar a figura ou a imagem de uma coisa corporal. Ora, sei já certamente que eu sou, e que, ao mesmo tempo, pode ocorrer que todas essas imagens e, em geral, todas as coisas que se relacionam à natureza do corpo sejam apenas sonhos ou quimeras. Em seguimento disso, vejo claramente que teria tão pouca razão ao dizer: excitarei minha imaginação para conhecer mais distintamente o que sou, como se dissesse: estou atualmente acordado e percebo algo de real e de verdadeiro; mas, visto que não o percebo ainda assaz nitidamente, dormiria intencionalmente a fim de que meus sonhos mo representassem com maior verdade e evidência. E, assim, reconheço certamente que nada, de tudo o que posso compreender por meio da imaginação, pertence a este conhecimento que tenho de mim mesmo e que é necessário lembrar e desviar o espírito dessa maneira de conceber a fim de que ele próprio possa reconhecer muito distintamente sua natureza.
9. Mas o que sou eu, portanto? Uma coisa que pensa. Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente. Certamente não pouco se todas essas coisas pertencem à minha natureza. Mas por que não lhe pertenceriam? Não sou eu próprio esse mesmo que duvida de quase tudo, que, no entanto, entende e concebe certas coisas, que assegura e afirma que somente tais coisas são verdadeiras, que nega todas as demais, que quer e deseja conhecê-las mais, que não quer ser enganado, que imagina muitas coisas, mesmo mau grado seu, e que sente também muitas como que por intermédio dos órgãos do corpo? Haverá algo em tudo isso que não seja tão verdadeiro quanto é certo que sou e que existo, mesmo se dormisse sempre e ainda quando aquele que me deu a existência se servisse de todas as suas forças para enganar-me? Haverá, também, algum desses atributos que possa ser distinguido de meu pensamento, ou que se possa dizer que existe separado de mim mesmo? Pois é por si tão evidente que sou eu quem duvida, quem entende e quem deseja que não é necessário nada acrescentar aqui para explicá-lo. E tenho também certamente o poder de imaginar; pois, ainda que possa ocorrer (como supus anteriormente) que as coisas que imagino não sejam verdadeiras, este poder de imaginar não deixa, no entanto, de existir realmente em mim e faz parte do meu pensamento. Enfim, sou o mesmo que sente, isto é, que recebe e conhece as coisas como que pelos órgãos dos sentidos, posto que, com efeito, vejo a luz, ouço o ruído, sinto o calor. Mas dir-me-ão que essas aparências são falsas e que eu durmo. Que assim seja; todavia, ao menos, é muito certo que me parece que vejo, que ouço e que me aqueço; e é propriamente aquilo que em mim se chama sentir e isto, tomado assim precisamente, nada é senão pensar. Donde, começo a conhecer o que sou, com um pouco mais de luz e de distinção do que anteriormente.
10. Mas não me posso impedir de crer que as coisas corpóreas, cujas imagens se formam pelo meu pensamento, e que se apresentam aos sentidos, sejam mais distintamente conhecidas do que essa não sei que parte de mim mesmo que não se apresenta à imaginação: embora, com efeito, seja uma coisa bastante estranha que coisas que considero duvidosas e distantes sejam mais claras e mais facilmente conhecidas por mim do que aquelas que são verdadeiras e certas e que pertencem à minha própria natureza. Mas vejo bem o que seja: meu espírito apraz-se em extraviar-se e não pode ainda conter-se nos justos limites da verdade. Soltemos-lhe, pois, ainda uma vez, as rédeas a fim de que, vindo, em seguida, a libertar-se delas suave e oportunamente, possamos mais facilmente dominá-lo e conduzi-lo.
11. Comecemos pela consideração das coisas mais comuns e que acreditamos compreender mais distintamente, a saber, os corpos que tocamos e que vemos. Não pretendo falar dos corpos em geral, pois essas noções gerais são ordinariamente mais confusas, porém de qualquer corpo em particular. Tomemos, por exemplo, este pedaço de cera que acaba de ser tirado da colmeia: ele não perdeu ainda a doçura do mel que continha, retém ainda algo do odor das flores de que foi recolhido; sua cor, sua figura, sua grandeza, são patentes; é duro, é frio, tocamo-lo e, se nele batermos, produzirá algum som. Enfim, todas as coisas que podem distintamente fazer conhecer um corpo encontram-se neste.
12. Mas eis que, enquanto falo, é aproximado do fogo: o que nele restava de sabor exala-se, o odor se esvai, sua cor se modifica, sua figura se altera, sua grandeza aumenta, ele torna-se líquido, esquenta-se, mal o podemos tocar e, embora nele batamos, nenhum som produzirá. A mesma cera permanece após essa modificação? Cumpre confessar que permanece: e ninguém o pode negar. O que é, pois, que se conhecia deste pedaço de cera com tanta distinção? Certamente não pode ser nada de tudo o que notei nela por intermédio dos sentidos, posto que todas as coisas que se apresentavam ao paladar, ao olfato, ou à visão, ou ao tato, ou à audição, encontram-se mudadas e, no entanto, a mesma cera permanece. Talvez fosse como penso atualmente, a saber, que a cera não era nem essa doçura do mel, nem esse agradável odor das flores, nem essa brancura, nem essa figura, nem esse som, mas somente um corpo que um pouco antes me aparecia sob certas formas e que agora se faz notar sob outras. Mas o que será, falando precisamente, que eu imagino quando a concebo dessa maneira? Consideremo-lo atentamente e, afastando todas as coisas que não pertencem à cera, vejamos o que resta. Certamente nada permanece senão algo de extenso, flexível e mutável. Ora, o que é isto: flexível e mutável? Não estou imaginando que esta cera, sendo redonda, é capaz de se tornar quadrada e de passar do quadrado a uma figura triangular? Certamente não, não é isso, posto que a concebo capaz de receber uma infinidade de modificações similares e eu não poderia, no entanto, percorrer essa infinidade com minha imaginação e, por conseguinte, essa concepção que tenho da cera não se realiza através da minha faculdade de imaginar.
13. E, agora, que é essa extensão? Não será ela igualmente desconhecida, já que na cera que se funde ela aumenta e fica ainda maior quando está inteiramente fundida e muito mais ainda quando calor aumenta? E eu não conceberia claramente e segundo a verdade o que é a cera, se não pensasse que é capaz de receber mais variedades segundo a extensão do que jamais imaginei. É preciso, pois, que eu concorde que não poderia mesmo conceber pela imaginação o que é essa cera e que somente meu entendimento é quem o concebe; digo este pedaço de cera em particular, pois para a cera em geral é ainda mais evidente. Ora, qual é este cera que não pode ser concebida senão pelo entendimento ou pelo espírito? Certamente é a mesma que vejo, que toco, que imagino e a mesma que conhecia desde o começo. Mas o que é de notar é que sua percepção, ou a ação pela qual é percebida, não é uma visão, nem um tatear, nem uma imaginação, e jamais o foi, embora assim o parecesse anteriormente, mas somente uma inspeção do espírito, que pode se imperfeita e confusa, como era antes, ou clara e distinta, como é presentemente, conforme minha atenção se dirija mais ou menos às coisas que existem nela e das quais é composta.
14. Entretanto, eu não poderia espantar-me demasiado ao considerar o quanto meu espírito tem de fraqueza e de pendor que o leva insensivelmente ao erro. Pois, ainda que sem falar eu considere tudo isso em mim mesmo, as palavras detêm-me, todavia, e sou quase enganado pelos termos da linguagem comum; pois nós dizemos que vemos a mesma cera, se no-la apresentam, e não que julgamos que é a mesma, pelo fato de ter a mesma cor e a mesma figura: donde desejaria quase concluir que se conhece a cera pela visão dos olhos e não pela tão só inspeção do espírito, se por acaso não olhasse pela janela homens que passam pela rua, à vista dos quais não deixo de dizer que vejo homens da mesma maneira que digo que vejo a cera; e, entretanto, que vejo desta janela, senão chapéus e casacos que podem cobrir espectros ou homens fictícios que se movem apenas por molas? Mas julgo que são homens verdadeiros e assim compreendo, somente pelo poder de julgar que reside em meu espírito, aquilo que acreditava ver com meus olhos.
15. Um homem que procura elevar seu conhecimento para além do comum deve envergonhar-se de aproveitar ocasiões para duvidar das formas e dos termos do falar do vulgo; prefiro passar adiante e considerar se eu concebia com maior evidência e perfeição o que era a cera, quando a percebi inicialmente e acreditei conhecê-la por meio do senso comum, como o chamam, isto é, por meio do poder imaginativo, do que a concebo presentemente, após haver examinado mais exatamente o que ela é e de que maneira pode ser conhecida. Por certo, seria ridículo colocar isso em dúvida. Pois, que havia nessa primeira percepção que fosse distinto e evidente e que não pudesse cair da mesma maneira sob os sentidos do menor dos animais? Mas quando distingo a cera de suas formas exteriores e, como se a tivesse despido de suas vestimentas, considero-a inteiramente nua, é certo que, embora se possa ainda encontrar algum erro em meu juízo, não a posso conceber dessa forma sem um espírito humano.
16. Mas, enfim, que direi desse espírito, isto é, de mim mesmo? Pois até aqui não admiti em mim nada além de um espírito. Que declararei, digo, de mim, que pareço conceber com tanta nitidez e distinção este pedaço de cera? Não me conheço a mim mesmo não só com muito mais verdade e certeza, mas também com muito maior distinção e nitidez? Pois, se julgo que a cera é ou existe pelo fato de eu a ver, sem dúvida segue-se bem mais evidentemente que eu próprio sou, ou que existo pelo fato de eu a ver. Pois pode acontecer que aquilo que eu vejo não seja, de fato, certa; pode também dar-se que eu não tenha olhos para ver coisa alguma; mas não pode ocorrer, quando vejo ou (coisa que não mais distingo) quando penso ver, que eu, que penso, não seja alguma coisa Do mesmo modo, se julgo que a cera existe, pelo fato de que a toco, seguir-se-á ainda a mesma coisa, ou seja, que eu sou; e se o julgo porque minha imaginação disso me persuade, ou por qualquer outra causa que seja, concluirei sempre a mesma coisa. E o que notei aqui a respeito da cera pode aplicar-se a todas as outras coisas que me são exteriores e que se encontram fora de mim.
17. Ora, se a noção ou conhecimento da cera parece ser mais nítido e mais distinto após ter sido descoberto não somente pela visão ou pelo tato, mas ainda por muitas outras causas, com quão maior evidência, distinção e nitidez não deverei eu conhecer-me, posto que todas as razões que servem para conhecer e conceber a natureza da cera, ou qualquer outro corpo, provam muito mais fácil e evidentemente a natureza de meu espírito? E encontram-se ainda tantas outras coisas no próprio espírito que podem contribuir ao esclarecimento de sua natureza, que aquelas que dependem do corpo (como esta) não merecem quase ser enumeradas.
18. Mas, enfim, eis que insensivelmente cheguei aonde queria; pois, já que é coisa presentemente conhecida por mim que, propriamente falando, só concebemos os corpos pela faculdade de entender em nós existente e não pela imaginação nem pelos sentidos, e que não os conhecemos pelo fato de os ver ou de tocá-los, mas somente por os conceber pelo pensamento, reconheço com evidência que nada há que me seja mais fácil de conhecer do que meu espírito. Mas, posto que é quase impossível desfazer-se tão prontamente de uma antiga opinião, será bom que eu me detenha um pouco neste ponto, a fim de que, pela amplitude de minha meditação, eu imprima mais profundamente em minha memória. Assim sendo o autor conclui sua SEGUNDA MEDITAÇÃO com a afirmação de que a única certeza que se pode obter é a da própria existência, ou seja, a famosa frase "Penso, logo existo" (cogito, ergo sum). Descartes conclui que, mesmo duvidando de tudo, incluindo a existência do mundo exterior, não se pode duvidar de que se está a pensar, o que implica que se ele pensa é porque ele de fato existe.
MEDITAÇÃO TERCEIRA - DE DEUS; QUE ELE EXISTE.
1. Fecharei agora os olhos, tamparei meus ouvidos, desviar-me-ei de todos os meus sentidos, apagarei mesmo de meu pensamento todas as imagens de coisas corporais, ou, ao menos, uma vez que mal se pode fazê-lo, reputá-las-ei como vãs e como falsas; e assim, entretendo-me apenas comigo mesmo e considerando meu interior, empreenderei tornar-me pouco a pouco mais conhecido e mais familiar a mim mesmo. Sou uma coisa que pensa, isto é, que duvida, que afirma, que nega, que conhece poucas coisas, que ignora muitas, que ama, que odeia, que quer e não quer, que também imagina e que sente. Pois, assim como notei acima, conquanto as coisas que sinto e imagino não sejam talvez absolutamente nada fora de mim e nelas mesmas, estou, entretanto, certo de que essas maneiras de pensar, que chamo sentimentos e imaginações somente na medida em que são maneiras de pensar, residem e se encontram certamente em mim. E neste pouco que acabo de dizer creio ter relatado tudo o que sei verdadeiramente, ou, pelo menos, tudo o que até aqui notei que sabia.
2. Agora considerarei mais exatamente se talvez não se encontrem absolutamente em outros conhecimentos que não tenha ainda percebido. Estou certo de que sou uma coisa pensante; mas não saberei também, portanto, o que é requerido para me tornar certo de alguma coisa? Nesse primeiro conhecimento só se encontra uma clara e distinta percepção daquilo que conheço; a qual, na verdade, não seria suficiente para me assegurar de que é verdadeira se em algum momento pudesse acontecer que uma coisa que eu concebesse tão clara e distintamente se verificasse falsa. E, portanto, parece-me que já posso estabelecer como regra geral que todas as coisas que concebemos mui clara e mui distintamente são todas verdadeiras.
3. Todavia, recebi e admiti acima várias coisas como muito certas e muito manifestas, as quais, entretanto, reconheci depois serem duvidosas e incertas. Quais eram, pois, essas coisas? Eram a terra, o céu, os astros e todas as outras coisas que percebia por intermédio de meus sentidos. Ora, o que é que eu concebia clara e distintamente nelas? Certamente nada mais exceto que as ideias ou os pensamentos dessas coisas se apresentavam a meu espírito. E ainda agora não nego que essas ideias se encontrem em mim. Mas havia ainda outra coisa que eu afirmava, e que, devido ao hábito que tinha de acreditar nela, pensava perceber mui claramente, embora na verdade não a percebesse de modo algum, a saber, que havia coisas fora de mim donde procediam essas ideias e às quais elas eram inteiramente semelhantes. E era nisso que eu me enganava; ou, se eu julgava talvez segundo a verdade, não havia nenhum conhecimento que eu tivesse que fosse causa da verdade de meu julgamento.
4. Mas quando considerava alguma coisa de muito simples e de muito fácil no tocante à Aritmética e à Geometria, por exemplo, que dois e três juntos produzem o número cinco, e outras coisas semelhantes, não as concebia eu pelo menos bastante claramente para assegurar que eram verdadeiras? Certamente, se julguei depois que se podia duvidar destas coisas, não foi por outra razão senão porque me veio ao espírito que talvez algum Deus tivesse podido me dar tal natureza que eu me enganasse mesmo no concernente às coisas que me parecem as mais manifestas. Mas todas as vezes que esta opinião acima concebida do soberano poder de um Deus se apresenta a meu pensamento, sou constrangido a confessar que lhe é fácil, se ele o quiser, proceder de tal modo que eu me engane mesmo nas coisas que acredito conhecer com uma evidência muito grande. E, ao contrário, todas as vezes que me volto para as coisas que penso conceber mui claramente sou de tal maneira persuadido delas que sou levado, por mim mesmo, a estas palavras: engane-me quem puder, ainda assim jamais poderá fazer que eu nada seja enquanto eu pensar que sou algo; ou que algum dia seja verdade que eu não tenha jamais existido, sendo verdade agora que eu existo; ou então que dois e três juntos façam mais ou menos do que cinco, ou coisas semelhantes, que vejo claramente não poderem ser de outra maneira senão como as concebo.
5. E, por certo, posto que não tenho nenhuma razão de acreditar que haja algum Deus que seja enganador, e mesmo que não tenha ainda considerado aquelas que provam que há um Deus, a razão de duvidar que depende somente desta opiniãoé bem frágil e, por assim dizer, metafísica. Mas, a fim de poder afastá-la inteiramente, devo examinar se há um Deus, tão logo a ocasião se apresente; e, se achar que existe um, devo também examinar se ele pode ser enganador: pois, sem o conhecimento dessas duas verdades, não vejo como possa jamais estar certo de coisa alguma. E a fim de que eu possa ter a ocasião de examinar isto sem interromper a ordem de meditação que me propus, que é de passar gradativamente das noções que encontrar em primeiro lugar no meu espírito para aquelas que aí poderei achar depois, cumpre aqui que eu divida todos os meus pensamentos em certos gêneros e considere em quais destes gêneros há propriamente verdade ou erro.
6. Entre meus pensamentos, alguns são como as imagens das coisas, e só àqueles convém propriamente o nome de ideias: como no momento em que eu represento um homem ou uma quimera, ou o céu, ou um ano, ou mesmo Deus. Outros, além disso, têm algumas outras formas: como, no momento em que eu quero, que eu temo, que eu afirmo ou que eu nego, então concebo efetivamente uma coisa como o sujeito da ação de meu espírito, mas acrescento alguma outra coisa, elas não podem, propriamente falando, ser falsas; pois quer eu imagine uma cabra ou uma quimera, não é menos verdadeiro que eu imagino tanto uma quanto a outra.
8. Não é preciso temer também que se possa encontrar falsidade nas afecções ou vontades; pois, ainda que possa desejar coisas más, ou mesmo que jamais existiram, não é por isso, todavia, menos verdade que as desejo.
9. Assim, restam tão somente os juízos, em relação aos quais eu devo acautelar-me para não me enganar. Ora, o principal erro e o mais comum que se pode encontrar consiste em que eu julgue que as ideias que estão em mim são semelhantes ou conformes às coisas que estão fora de mim; pois, certamente, se eu considerasse as ideias apenas como certos modos ou formas de pensamento, sem querer relacioná-las a algo de exterior, mal poderiam elas dar-me ocasião de falhar.
10. Ora, destas ideias, umas me parecem ter nascido comigo, outras ser estranhas e vir de fora, e as outras ser feitas e inventadas por mim mesmo. Pois, que eu tenha a faculdade de conceber o que é aquilo que geralmente se chama uma coisa ou uma verdade, ou um pensamento, parece-me que não o obtenho em outra parte senão em minha própria natureza; mas se ouço agora algum ruído, se vejo o sol, se sinto calor, até o presente julguei que estes sentimentos procediam de algumas coisas que existem fora de mim; e enfim parece-me que as sereias, os hipogrifos e todas as outras quimeras semelhantes são ficções e invenções de meu espírito. Mas também talvez eu possa persuadir-me de que todas essas ideias são do gênero das que eu chamo de estranhas e que vêm de fora ou que nasceram todas comigo ou, ainda, que foram todas feitas por mim; pois ainda não lhes descobri claramente a verdadeira origem. E o que devo fazer principalmente neste ponto é considerar, no tocante àquelas que me parecem vir de alguns objetos localizados fora de mim, quais as razões que me obrigam a acreditá-las semelhantes a esses objetos.
11. A primeira dessas razões é que me parece que isso me é ensinado pela natureza; e a segunda, que experimento em mim próprio que essas ideias não dependem, de modo algum, de minha vontade; pois amiúde se apresentam a mim mau grado meu, como agora, quer queira quer não, eu sinto calor, e por esta razão persuado-me de que este sentimento ou esta ideia de calor é produzido em mim por algo diferente de mim mesmo, ou seja, pelo calor do fogo ao pé do qual me encontro. E nada vejo que pareça mais razoável do que julgar que essa coisa estranha envia-me e imprime em mim sua semelhança, mais do quequalquer outra coisa.
12. Agora é preciso que eu veja se estas razões são suficientemente fortes e convincentes. Quando digo que me parece que isso me é ensinado pela natureza, entendo somente por essa palavra natureza certa inclinação que me leva a acreditar nessa coisa, e não uma luz natural que me faça conhecer que ela é verdadeira. Ora, essas duas coisas diferem muito entre si; pois eu nada poderia colocar em dúvida daquilo que a luz natural me revela ser verdadeiro, assim como ela me fez ver, há pouco, que, do fato de eu duvidar, podia concluir que existia. E não tenho em mim outra faculdade, ou poder, para distinguir o verdadeiro do falso, que me possa ensinar que aquilo que essa luz me mostra como verdadeiro não o é, e na qual eu me possa fiar tanto quanto nela. Mas, no que se refere a inclinações que também me parecem ser para mim naturais, notei frequentemente, quando se tratava de escolher entre as virtudes e os vícios, que elas não me levaram menos ao mal do que ao bem; eis por que não tenho motivo de segui-las tampouco no referente ao verdadeiro e ao falso.
13. E, quanto à outra razão, segundo a qual essas ideias devem provir de alhures, porquanto não dependem de minha vontade, tampouco a acho mais convincente. Pois, da mesma forma que as inclinações, de que falava há pouco, se encontram em mim, não obstante não se acordarem sempre com minha vontade, e assim talvez haja em mim alguma faculdade ou poder próprio para produzir essas ideias sem auxílio de quaisquer coisas exteriores, embora ela não me seja ainda conhecida; como, com efeito, sempre me pareceu até aqui que, quando durmo, elas se forma em mim sem a ajuda dos objetos que representam. E, enfim, ainda que eu estivesse de acordo que elas são causadas por esses objetos, não é uma consequência necessária que lhes devam ser semelhantes. Pelo contrário, notei amiúde, em muitos exemplos, haver uma grande diferença entre o objeto e sua ideia. Como, por exemplo, encontro em meu espírito duas ideias do sol inteiramente diversas: uma toma sua origem nos sentidos e deve ser colocada no gênero daquelas que disse acima provirem de fora, e pela qual o sol me parece extremamente pequeno; a outra é tomada nas razões da Astronomia, isto é, em certas noções nascidas comigo, ou, enfim, é formada por mim mesmo, de qualquer modo que seja, e pela qual o sol me parece muitas vezes maior do que a terra inteira. Por certo, essas duas ideias que concebo do sol não podem ser ambas semelhantes ao mesmo sol; e a razão me faz crer que aquela que vem imediatamente de sua aparência é a que lhe é mais semelhante.
14. Tudo isso me leva a conceber suficientemente que até esse momento não foi por um julgamento certo e premeditado, mas apenas por um cego e temerário impulso, que acreditei haver coisas fora de mim, e diferentes de meu ser, as quais, pelos órgãos de meus sentidos ou por qualquer outro meio que seja, enviam-me suas ideias ou imagens e imprimem em mim suas semelhanças.
15. Mas há ainda outra via para pesquisar se, entre as coisas das quais tenho em mim as ideias, há algumas que existem fora de mim. A saber, caso essas ideias sejam tomadas somente na medida em que são certas formas de pensar, não reconheço entre elas nenhuma diferença ou desigualdade, e todas parecem provir de mim de uma mesma maneira; mas, considerando-as como imagens, dentre as quais algumas representam uma coisa e as outras outra, é evidente que elas são bastante diferentes entre si. Pois, com efeito, aquelas que me representam substâncias são, sem dúvida, algo mais e contêm em si, por assim falar, mais realidade objetiva, isto é, participam, por representação, num maior número de graus de ser ou de perfeição do que aquelas que representam apenas modos ou acidentes. Além do mais, aquela pela qual eu concebo um Deus soberano, eterno, infinito, imutável, onisciente, onipotente e criador universal de todas as coisas que estão fora dele; aquela, digo, tem certamente em si mais realidade objetiva do que aquelas pelas quais as substâncias finitas me são representadas.
16. Agora, é coisa manifesta pela luz natural que deve haver ao menos tanta realidade na causa eficiente e total quanto no seu efeito: pois de onde é que o efeito pode tirar sua realidade senão de sua causa? E como poderia esta causa lha comunicar se não a tivesse em si mesma?
17. Daí decorre não somente que o nada não poderia produzir coisa alguma, mas também que o que é mais perfeito, isto é, o que contém em si mais realidade, não pode ser uma decorrência e uma dependência do menos perfeito. E esta verdade não é somente clara e evidente nos seus efeitos, que possuem essa realidade que os filósofos chama de atual ou forma, mas também nas ideias onde se considera somente a realidade que eles chamam de objetiva: por exemplo, a pedra que ainda não foi, não somente não pode agora começar a ser, se não for produzida por um coisa que possui em si formalmente, ou eminentemente, tudo o que entra na composição da pedra, ou seja, que contém em si as mesmas coisas ou outras mais excelentes do que aquelas que se encontram na pedra; e o calor não pode ser produzido em um objeto que dele era privado anteriormente se não for por uma coisa que seja de uma ordem, de um grau ou de um gênero ao menos tão perfeito quanto o calor, e assim os outros. Mas ainda, além disso, a ideia do calor, ou da pedra, não poder estar em mim se não tiver sido aí colocada por alguma causa que contenha em si ao menos tanta realidade quanto àquela que concebo no calor ou na pedra. Pois, ainda que essa causa não transmita à minha ideia nada de sua realidade atual ou formal, nem por isso se deve imaginar que essa causa deva ser menos real; mas deve-se saber que, sendo toda ideia uma obra do espírito, sua natureza é tal que não exige de si nenhuma outra realidade formal além da que recebe e toma de empréstimo do pensamento ou do espírito, do qual ela é apenas um modo, isto é, uma maneira ou forma de pensar. Ora, a fim de que uma ideia contenha tal realidade objetiva de preferência a outra, ela o deve, sem dúvida, a alguma causa, na qual se encontra ao menos tanta realidade formal quanto esta ideia contém de realidade objetiva. Pois, se supomos que existe algo na ideia que não se encontra em sua causa, cumpre, portanto, que Lea obtenha esse algo do nada; mas, por imperfeita que seja essa maneira de ser pela qual uma coisa é objetivamente ou por representação no entendimento por sua ideia, decerto não se pode dizer, no entanto, que essa maneira ou essa forma não seja nada, nem por conseguinte que essa ideia tire sua origem do nada. Não devo também duvidar que seja necessário que a realidade esteja formalmente nas causas de minhas ideias, embora a realidade que eu considero nessas ideias seja somente objetiva, nem pensar que basta que essa realidade se encontre objetivamente em suas causas; pois, assim como essa maneira de ser objetivamente pertence às ideias, pela própria natureza delas, do mesmo modo a maneira ou forma de ser formalmente pertence às causas dessas ideias, ao menos as primeiras e principais, pela própria natureza delas. E ainda que possa ocorrer que uma ideia dê origem a outra ideia, isso todavia não pode estender-se ao infinito, mas é preciso chegar ao fim a uma primeira ideia, cuja causa seja um como padrão ou original, na qual toda a realidade ou perfeição, esteja contida formalmente e em efeito, a qual só se encontre objetivamente ou por representação nessas ideias. De sorte que a luz natural me faz conhecer evidentemente que as ideias são em mim como quadros, ou imagens, que podem na verdade facilmente não conservar a perfeição das coisas de onde foram tiradas, mas que jamais podem conter algo de maior ou de mais perfeito.
18. E quanto mais longa e cuidadosamente examino todas as coisas, tanto mais clara e distintamente reconheço que elas são verdadeiras. Mas, enfim, que concluirei de tudo isso? Concluirei que, se a realidade objetiva de alguma de minhas ideias é tal que eu reconheça claramente que ela não está em mim nem formal nem eminentemente e que, por conseguinte, não posso, eu mesmo, ser-lhe a causa, daí decorre necessariamente que não existo sozinho no mundo, mas que há ainda algo que existe e que é a causa desta ideia; ao passo que, se não se encontrar em mim tal ideia, não terei nenhum argumento que me possa convencer e me certificar da existência de qualquer outra coisa além de mim mesmo; pois procurei-os a todos cuidadosamente e não pude, até agora, encontrar nenhum.
19. Ora, entre essas ideias, além daquela que me representa a mim mesmo, sobre a qual não pode haver aqui nenhuma dificuldade, há outra que me representa um Deus, outras as coisas corporais e inanimadas, outras, enfim, que me representam homens semelhantes a mim. Mas, no que se refere às ideias que me representam outros homens ou animais, ou anjos, concebo facilmente que podem ser formadas pela mistura e composição de outras ideias que tenho das coisas corporais e de Deus, ainda que não houvesse, fora de mim, no mundo, outros homens, nem quaisquer animais ou anjos. E quanto às ideias das coisas corporais, nada reconheço de tão grande nem de tão excelente que não me pareça poder provir de mim mesmo; pois, se as considero de mais perto, e se as examino da mesma maneira como examinava, há pouco, a ideia da cera, verifico que pouquíssima coisa nela se encontra que eu conceba clara e distintamente: a saber, a grandeza ou a extensão em lonjura, largura e profundidade; a figura que é formada pelos termos e pelos limites dessa extensão; a situação que os corpos diferentemente figurados guardam entre si; e o movimento ou a modificação dessa situação; aos quais podemos acrescentar a substância, a duração e o número. Quanto às outras coisas, como a luz, as cores, os sons, os odores, os sabores, o calor, o frio e as outras qualidades que caem sob o tato, encontram-se em meu pensamento com tanta obscuridade e confusão que Ignoro mesmo se são verdadeiras ou falsas e somente aparentes, isto é, se as ideias que concebo dessas qualidades são, com efeito, as ideias de algumas coisas reais, ou se não me representam apenas seres quiméricos que não podem existir. Pois, ainda que eu tenha notado acima que só nos juízos é que se pode encontrar a falsidade formal e verdadeira, pode, no entanto, ocorrer que se encontre nas ideias certa falsidade material, a saber, quando elas representam o que nada é como se fosse alguma coisa. Por exemplo, as ideias que tenho do calor e do frio são tão pouco claras e tão pouco distintas, que por seu intermédio não posso discernir se o frio é somente uma privação do calor ou o calor uma privação do frio, ou ainda se uma e outra são qualidades reais ou não o são; e visto que, sendo as ideias como que imagens, não pode haver nenhuma que não nos pareça representar alguma coisa, se é certo dizer que o frio nada é senão privação do calor, a ideia que mo representa como algo de real e de positivo será sem despropósito chamada falsa, e assim outras ideias semelhantes; às quais certamente não é necessário que eu atribua outro autor exceto eu mesmo. Pois, se elas são falsas, isto é, se representam coisas que não existem, a luz natural me faz conhecer que procedem do nada, ou seja, que estão em mim apenas porque falta algo à minha natureza e porque ela não é inteiramente perfeita. E se essas ideias são verdadeiras, todavia, já que me revelam tão pouca realidade que não posso discernir nitidamente a coisa representada do não ser, não vejo razão pela qual não possam ser produzidas por mim mesmo e eu não possa ser o seu autor.
20. Quanto às ideias claras e distintas que tenho das coisas corporais, há algumas dentre elas que, parece, pude tirar da ideia que tenho de mim mesmo, como a que tenho da substância, da duração, do número e de outras coisas semelhantes. Pois, quando penso que a pedra é uma substância, ou uma coisa que é por si capaz de existir, e em seguida que sou uma substância, embora eu conceba de fato que sou uma coisa pensante e não extensa, e que a pedra, ao contrário, é uma coisa extensa e não pensante, e que, assim, entre essas duas concepções há uma notável diferença, elas parecem, todavia, concordar na medida em que representam substâncias. Da mesma maneira, quando pensão que sou agora e me lembro, além disso, de ter sido outrora e concebo mui diversos pensamentos, cujo número conheço, então adquiro em mim as ideias da duração e do número que, em seguida, posso transferir a todas as outras coisas que quiser 21. Quanto às outras qualidades de cujas ideias são compostas as coisas corporais, a saber, a extensão, a figura, a situação e o movimento de lugar, é verdade que elas não estão formalmente em mim, posto que sou apenas uma coisa que pensa; mas, já que são somente certos modos da substância, e como que as vestes sob as quais a substância corporal nos aparece, e que sou, eu mesmo, uma substância, parece que elas podem estar contidas em mim eminentemente.
22. Portanto, resta tão somente a ideia de Deus, na qual é preciso considerar se há algo que não possa ter provindo de mim mesmo? Pelo nome de Deus entendo uma substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente e pela qual que próprio e todas as coisas que são (se é verdade que há coisas que existem) foram criadas e produzidas. Ora,essas vantagens são tão grandes e tão eminentes que, quanto mais atentamente as considero, menos me persuado de que essa ideia possa tirar usa origem de mim tão somente. E, por conseguinte, é preciso necessariamente concluir, de tudo o que foi dito antes, que Deus existe; pois, ainda que a ideia da substância esteja em mim, pelo próprio fato de ser eu uma substância, eu não teria, todavia, a ideia de uma substância infinita, eu que sou um ser finito, se ela não tivesse sido colocada em mim por alguma substância que fosse verdadeiramente infinita.
23. E não devo imaginar que não concebo o infinito por uma verdadeira ideia, mas somente pela negação do que é finito, do mesmo modo que compreendo o repouso e as trevas pela negação do movimento e da luz; pois, ao contrário, vejo manifestamente que há mais realidade na substância infinita do que na substância finita e, portanto, que, de alguma maneira, tenho em mim a noção do infinito anteriormente à do finito, isto é, de Deus antes que de mim mesmo. Pois, como seria possível que eu pudesse conhecer que duvido e que desejo, isto é, que me falta algo e que não sou inteiramente perfeito, se não tivesse em mim nenhuma ideia de um ser mais perfeito que o meu, em comparação ao qual eu conheceria as carências de minha natureza?
24. E não se pode dizer que esta ideia de Deus talvez seja materialmente falsa, e que, por conseguinte, eu a possa ter do nada, isto é, que ela possa estar em mim pelo fato de eu ter carência, como disse acima, das ideias de calor e de frio e de outras coisas semelhantes: pois, ao contrário, sendo esta ideia mui clara e distinta, e contendo em si mais realidade objetiva do que qualquer outra, não há nenhuma que seja por si mais verdadeira nem que possa ser menos suspeita de erro e de falsidade.
25. A ideia, digo, desse ser soberanamente perfeito e infinito é inteiramente verdadeira; pois, ainda que talvez se possa fingir que um tal ser não existe, não se pode fingir, todavia, que sua ideia não me representa nada de real, como disse há pouco da ideia do frio.
26. Esta mesma ideia é também mui clara e distinta porque tudo o que meu espírito concebe clara e distintamente de real e de verdadeiro, e que contém em si alguma perfeição, está contido e encerrado inteiramente nessa ideia.
27. E isto não deixa de ser verdadeiro, ainda que eu não compreenda o infinito, ou mesmo que se encontre em Deus uma infinidade de coisas que eu não possa compreender, nem talvez também atingir de modo algum pelo pensamento: pois é da natureza do infinito que minha natureza, que é finita e limitada, não possa compreendê-lo; e basta que eu conceba bem isto, e que julgue que todas as coisas que concebo claramente, e nas quais sei que há alguma perfeição, e talvez também uma infinidade de outras que ignoro, estão em Deus formal ou eminentemente, para que a ideia que dele tenho seja a mais verdadeira, a mais clara e a mais distinta dentre todas as que se acham em meu espírito.
28. Mas é possível também que eu seja algo mais do que imagino ser e que todas as perfeições que atribuo à natureza de um Deus estejam de algum modo em mim em potência, embora ainda não se produzam e não façam surgir suas ações. Com efeito, já percebo que meu conhecimento aumenta e se aperfeiçoa pouco a pouco e nada vejo que o possa impedir de aumentar cada vez mais até o infinito; pois, sendo assim acrescido e aperfeiçoado, nada vejo que impeça que eu possa adquirir, por seu meio, todas as outras perfeições da natureza divina; e, enfim, parece que o poder que tenho para a aquisição dessas perfeições, se ele existe em mim, pode ser capaz de aí imprimir e introduzir suas ideias. Todavia, olhando um pouco mais de perto, reconheço que isto não pode ocorrer; pois, primeiramente, ainda que fosse verdade que meu conhecimento adquire todos os dias novos graus de perfeição e que houvesse em minha natureza muitas coisas em potência que não existem ainda atualmente, todavia essas vantagens não pertencem e não se aproximam de maneira alguma da ideia que tenho da Divindade, na qual nada se encontra em potência, mas onde tudo é atualmente e efetivamente. E não será mesmo um argumento infalível e muito seguro de imperfeição em meu conhecimento o fato de crescer ele pouco a pouco e aumentar gradativamente? Demais, ainda que meu conhecimento aumentasse progressivamente, nem por isso deixo de conceber que ele não poderia ser atualmente infinito, porquanto jamais chegará a tão alto grau de perfeição que não seja ainda capaz de adquirir algum maior acréscimo. Mas concebo Deus atualmente infinito em tão alto grau que nada se pode acrescentar à soberana perfeição que ele possui. E, enfim, compreendo muito bem que o ser objetivo de uma ideia não pode ser produzido por um ser que existe apenas em potência, o qual, propriamente falando, não é nada, mas somente por um ser formal ou atual.
29. E por certo nada vejo em tudo o que acabo de dizer pela luz natural a todos os que quiserem pensar nisto cuidadosamente: mas, quando abrando um pouco minha atenção, achando-se meu espírito obscurecido e como que cegado pelas imagens das coisas sensíveis, não se lembra facilmente da razão pela qual a ideia que tenho de um ser mais perfeito que o meu deva necessariamente ter sido colocada em mim por um ser que seja de fato mais perfeito.
30. Eis por que desejo passar adiante e considerar se eu mesmo, que tenho essa ideia de Deus, poderia existir, no caso de não haver Deus. E, pergunto, de quem tirarei minha existência? Talvez de mim mesmo, ou de meus pais, ou ainda de quaisquer outras causas menos perfeitas que Deus; pois nada se pode imaginar de mais perfeito, nem mesmo de igual a ele.
31. Ora, se eu fosse independente de todo outro ser, e fosse eu próprio o autor de meu ser, certamente não duvidaria de coisa alguma, não me faltaria perfeição alguma; pois eu me teria dado todas aquelas de que tenho alguma ideia e assim seria Deus.
32. E não devo imaginar que as coisas que me faltam são talvez mais difíceis de adquirir do que aquelas das quais já estou de posse; pois, ao contrário, é bem certo que foi muito mais difícil que eu, isto é, uma coisa ou uma substância pensante, haja saído do nada, do que me seria adquirir as luzes e os conhecimentos de muitas coisas que ignoro, e que são apenas acidentes dessa substância. E, assim, sem dificuldade, se eu mesmo me tivesse dado esse mais de que acabo de falar, isto é, se eu fosse o autor de meu nascimento e de minha existência, eu não me teria privado ao menos de coisas que são de mais fácil aquisição, a saber, de muitos conhecimentos de que minha natureza está despojada; não me teria tampouco privado de nenhuma das coisas que estão contidas na ideia que concebo de Deus, pois não há nenhuma que me pareça de mais difícil aquisição; e se houvesse alguma, certamente ela me pareceria tal (supondo que tivesse por mim todas as outras coisas que possuo), porque eu sentiria que minha força acabaria neste ponto e não seria capaz de alcançá-lo.
33. E ainda que possa supor que talvez tenha sido sempre como sou agora, nem por isso poderia evitar a força desse raciocínio, e não deixo de conhecer que é necessário que Deus seja o autor de minha existência. Pois todo o tempo de minha vida pode ser dividido em uma infinidade de partes, cada uma das quaisnão depende de maneira alguma das outras; e assim do fato de ter sido um pouco antes não segue que eu deva ser atualmente, a não ser que neste momento alguma causa me produza e me crie, por assim dizer, novamente, isto é, me conserve.
34. Com efeito, é uma coisa muito clara e muito evidente (para todos os que considerarem com atenção a natureza do tempo) que uma substância, para ser conservada em todos os momentos de sua duração, precisa do mesmo poder e da mesma ação, que seria necessário para produzi-la e criá-la de novo, caso não existisse ainda. De sorte que a luz natural nos mostra claramente que a conservação e a criação não diferem senão com respeito à nossa maneira de pensar, e não em efeito. Cumpre, pois, apenas que eu me interrogue a mim mesmo para saber se possuo algum poder e alguma virtude que seja capaz de fazer de tal modo que eu, que sou agora, seja ainda no futuro: pois, já que eu sou apenas uma coisa pensante, ou ao menos já que não se trata até aqui precisamente senão dessa parte de mim mesmo, se um tal poder residisse em mim, decerto eu deveria ao menos pensá-lo e ter conhecimento dele: mas não sinto nenhum poder em mim e por isso reconheço evidentemente que dependo de algum ser diferente de mim.
35. Poderá também ocorrer que este ser de que dependo não seja aquilo que chamo Deus e que seja produzido ou por meus pais ou por outras causas menos perfeitas do que ele? Muito ao contrário, isso não pode ser assim. Pois, como já disse anteriormente, é uma coisa evidente que deve haver ao menos tanta realidade na causa quanto em seu efeito. E portanto, já que sou uma coisa pensante, e tenho em mim alguma ideia de Deus, qualquer que seja, enfim, a causa que se atribua à minha natureza, cumpre necessariamente confessar que ela deve ser de igual modo uma coisa pensante e possuir em si a ideia de todas as perfeições que atribuo à natureza divina. Em seguida, pode-se de novo pesquisar se essa causa tem sua origem e sua existência de si mesma ou de alguma outra coisa. Pois se ela a tem de si própria, segue-se, pelas razões que anteriormente aleguei, que deve ser, ela mesma, Deus; porquanto, tendo a virtude de ser e de existir por si, ela deve também, sem dúvida, ter o poder de possuir atualmente todas as perfeições cujas ideias concebe, isto é, todas aquelas que eu concebo como existentes em Deus. Se ela tira sua existência de alguma outra causa diferente de si, tornar-se-á a perguntar, pela mesma razão, a respeito desta segunda causa, se ela é por si, ou por outrem, até que gradativamente se chegue a uma última causa que se verificará ser Deus. E é muito manifesto que nisto não pode haver progresso até o infinito, posto que não se trata tanto aqui da causa que me produziu outrora como da que me conserva presentemente.
36. Não se pode fingir também que talvez muitas causas juntas tenham concorrido em parte para me produzir, e que de uma recebi a ideia de uma das perfeições que atribuo a Deus, e de outra a ideia de alguma outra, de sorte que todas essas perfeições se encontram na verdade em alguma parte do Universo, mas não se acham todas juntas e reunidas em uma só que seja Deus. Pois, ao contrário, a unidade, a simplicidade ou a inseparabilidade de todas as coisas que existem em Deus é uma das principais perfeições que concebo existentes nele; e por certo a ideia dessa unidade e reunião de todas as perfeições de Deus não foi colocada em mim por nenhuma causa da qual eu não haja recebido também as ideias de todas as outras perfeições. Pois ela não mais pode ter feito compreender juntas e inseparáveis, sem fazer ao mesmo tempo com que eu soubesse o que elas eram e que as conhecesse a todas de alguma maneira.
37. No que se refere aos meus pais, aos quais parece que devo meu nascimento, ainda que seja verdadeiro tudo quanto jamais pude acreditar a seu respeito, daí não decorre todavia que sejam eles que me conservam, nem que me tenham feito e produzido enquanto coisa pensante, pois apenas puseram algumas disposições nessa matéria, na qual julgo que eu, isto é, meu espírito – a única coisa que considero atualmente como eu próprio – se acha encerrado; e, portanto, não pode haver aqui, quanto a eles, nenhuma dificuldade, mas é preciso concluir necessariamente que, pelo simples fato de que eu existo e de que a ideia de um ser soberanamente perfeito, isto é, Deus, é em mim, a existência de Deus está mui evidentemente demonstrada.
38. Resta-me apenas examinar de que maneira adquiri esta ideia. Pois não a recebi dos sentidos e nunca ela se ofereceu a mim contra minha expectativa, como o fazem as ideias das coisas sensíveis quando essas coisas se apresentam ou parecem apresentar-se aos órgãos exteriores de meus sentidos. Não é também uma pura produção ou ficção de meu espírito; pois não está em meu poder diminuir-lhe ou acrescentar-lhe coisa alguma. E, por conseguinte, não resta outra coisa a dizer senão que, como a ideia de mim mesmo, ela nasceu e foi produzida comigo desde o momento em que fui criado.
39. E certamente não se deve achar estranho que Deus, ao me criar, haja posto em mim esta ideia para ser como que a marca do operário impressa em sua obra; e não é tampouco necessário que essa marca seja algo diferente da própria obra. Mas pelo simples fato de Deus me ter criado, é bastante crível que ele, de algum modo, me tenha produzido à sua imagem e semelhança, na qual a ideia de Deus se acha contida, por meio da mesma faculdade pela qual me concebo a mim próprio; isto quer dizer que, quando reflito sobre mim, não só conheço que sou uma coisa imperfeita, incompleta e dependente de outrem, que tende e aspira incessantemente a algo de melhor e de maior do que sou, mas também conheço, ao mesmo tempo, que aquele de quem dependo possui em si todas essas grandes coisas a que aspiro e cujas ideias encontro em mim, não indefinidamente e só em potência, mas que ele as desfruta de fato, atual e infinitamente e, assim, que ele é Deus. E toda a força do argumento de que aqui me servi para provar a existência de Deus consiste em que reconheço que seria impossível que minha natureza fosse tal como é, ou seja, que eu tivesse em mim a ideia de um Deus, se Deus não existisse verdadeiramente; esse mesmo Deus, digo eu, do qual existe uma ideia em mim, isto é, que possui todas essas altas perfeições de que nosso espírito pode possuir alguma ideia, sem, no entanto, compreendê-las a todas, que não é sujeito a carência alguma e que nada tem de todas as coisas que assinalam alguma imperfeição.
40. Daí é bastante evidente que ele não pode ser embusteiro, posto que a luznatural nosensina que o embuste depende necessariamente de alguma carência.
41. Mas, antes de examinar mais cuidadosamente isso e passar à consideração das outras verdades que daí se podem inferir, parece-me muito a propósito deter- me algum tempo na contemplação deste Deus todo perfeito, ponderar totalmente à vontade seus maravilhosos atributos, considerar, admirar e adorar a incomparável beleza dessa imensa luz, ao menos na medida em que a força de meu espírito, que queda de algum modo ofuscado por ele, mo puder permitir.
42. Pois, como a fé nos ensina que a soberana felicidade da outra vida nãoconsiste senão nessa contemplação da Majestade divina, assim perceberemos, desde agora, que semelhante meditação, embora incomparavelmente menos perfeita, nos faz gozar do maior contentamento de que sejamos capazes de sentir nesta vida. Essa TERCEIRA MEDITAÇÃO o autor conclui que, por meio da razão e da análise da nossa própria mente, podemos demonstrar a existência de Deus como uma verdade indubitável: DEUS EXISTE. Ele faz isso com base na sua análise da ideia de Deus, que é uma ideia de um ser perfeito e infinito. Ele argumenta que, como não é possível que uma coisa perfeitíssima seja criada por um ser imperfeito (como ele mesmo, que é um ser finito), a ideia de Deus só pode ter vindo de um ser que é, de facto, perfeito e infinito: Deus. A ideia de Deus: um ser perfeito e infinito, existe na mente humana. Essa ideia não pode ter sido criada pelo próprio humano que é finito. Logo, essa ideia deve ter sido impressa na mente humana por um ser perfeito e infinito, que é Deus. Portanto, Deus existe. Descartes utiliza uma argumentação que é conhecida como argumento ontológico, que consiste em deduzir a existência de Deus a partir da análise da ideia de Deus. Ele também usa um argumento causal, argumentando que a ideia de Deus, como uma ideia de um ser perfeito, não pode ter sido produzida por uma causa menos perfeita do que Deus.
MEDITAÇÃO QUARTA - DO VERDADEIRO E DO FALSO 1. Acostumei-me de tal maneira nesses dias passados a desligar meu espírito dos sentidos e notei tão exatamente que há muito poucas coisas que se conhecem com certeza no tocante às coisas corporais, que há muito mais que nos são conhecidas quanto ao espírito humano, e muito mais ainda quanto ao próprio Deus, que agora desviarei sem nenhuma dificuldade meu pensamento da consideração das coisas sensíveis ou imagináveis, para dirigi-lo àquelas que, sendo desprendidas de toda matéria, são puramente inteligíveis.
2. E certamente a ideia que tenho do espírito humano, enquanto é uma coisa pensante e não extensa, em lonjura, largura e profundidade, e que não participa de nada que pertence ao corpo, é incomparavelmente mais distinta do que a ideia de qualquer coisa corporal. E quando considero que duvido, isto é, que sou uma coisa incompleta e dependente, a ideia de um ser completo e independente, ou seja, de Deus, apresenta-se a meu espírito com igual distinção e clareza; e do simples fato de que essa ideia se encontra em mim, ou que sou ou existo, eu que possuo esta ideia, concluo tão evidentemente a existência de Deus e que a minha depende inteiramente dele em todos os momentos de minha vida, que não penso que o espírito humano possa conhecer algo com maior evidência e certeza. E já me parece que descubro um caminho que nos conduzirá desta contemplação do verdadeiro Deus (no qual todos os tesouros da ciência e da sabedoria estão encerrados) ao conhecimento das outras coisas do Universo.
3. Pois, primeiramente, reconheço que é impossível que ele me engane jamais, posto que em toda fraude e embuste se encontra algum modo de imperfeição. E, conquanto pareça que poder enganar seja um sinal de sutileza ou de poder, todavia querer enganar testemunha indubitavelmente fraqueza ou malícia. E, portanto, isso não se pode encontrar em Deus.
4. E seguida, experimento em mim mesmo certa capacidade de julgar, que sem dúvida recebi de Deus, do mesmo modo que todas as outras coisas que possuo; e como ele não quereria iludir-me, é certo que ma deu tal que não poderei jamais falhar, quando a usar como é necessário. E não restaria nenhuma dúvida quanto a esta verdade, se não fosse possível, ao que parece, inferir dela a consequência de que assim nunca me enganei; pois se devo a Deus tudo o que possuo e se ele não me deu nenhum poder para falhar, parece que nunca devo enganar-me. E, na verdade, quando penso apenas em Deus, não descubro em mim nenhuma causa de erro ou de falsidade; mas em seguida, retornando a mim, a experiência me ensina que estou, não obstante, sujeito a uma infinidade de erros e, ao procurar de mais perto a causa deles, noto que ao meu pensamento não se apresenta somente uma ideia real e positiva de Deus, ou seja, de um soberanamente perfeito, mas também, por assim dizer, certa ideia negativa do nada, isto é, daquilo que está infinitamente distante de toda sorte de perfeição; e que sou como que um meio entre Deus e o nada, isto é, colocado de tal maneira entre o soberano ser e o não ser que nada se encontra em mim, na verdade, que me possa conduzir ao erro, na medida em que um soberano ser me produziu; mas que, se me considero participante de alguma maneira do nada ou do não ser, isto é, na medida em que não sou eu próprio o soberano ser, acho-me exposto a uma infinidade de faltas, de modo que não devo espantar-me se me engano.
5. Assim, conheço que o erro enquanto tal não é algo de real que dependa de Deus, mas que é apenas uma carência; e, portanto, que não tenho necessidade, para falhar, de algum poder que me tenha sido dado por Deus particularmente para esse efeito, mas que ocorre que eu me engane pelo fato de o poder que Deus me doou para discernir o verdadeiro do falso não ser infinito em mim.
6. Todavia, isto ainda não me satisfaz inteiramente; pois o erro não é uma pura negação, isto é, não é a simples carência ou falta de alguma perfeição que me não é devida, mas antes é uma privação de algum conhecimento que parece que eu deveria possuir. E, considerando a natureza de Deus, não me parece possível que me tenha dado alguma faculdade que seja imperfeita em seu gênero, isto é, à qual falte alguma perfeição que lhe seja devida; pois, se é verdade que, quanto mais um artesão é perito mais as obras que saem de suas mãos são perfeitas e acabadas, que ser imaginaríamos nós que, produzido por esse soberano crcriador de todas as coisas, não fosse perfeito e inteiramente acabado em todas as suas partes? E por certo não há dúvida de que Deus só pode me ter criado de tal maneira que jamais eu pudesse enganar-me; é certo também que ele quer sempre aquilo que é o melhor: ser-me-á, pois, mais vantajoso falhar do que não falhar?
7. Considerando isso com mais atenção, ocorre-me inicialmente ao pensamento que me não devo espantar se minha inteligência não for capaz de compreender por que Deus faz o que faz e que assim não tenho razão alguma de duvidar de sua existência, pelo fato de que, talvez, eu veja por experiência muitas outras coisas sem poder compreender por que razão nem como Deus as produziu. Pois, sabendo já que minha natureza é extremamente fraca e limitada, e, ao contrário, que a de Deus é imensa, incompreensível e infinita, não mais tenho dificuldade em reconhecer que há uma infinidade de coisas em sua potência cujas causas ultrapassam o alcance de meu espírito. E esta única razão é suficiente para persuadir-me de que todo esse gênero de causas que se costuma tirar do fim não é de uso algum nas coisas físicas ou naturais; pois não me parece que eu possa sem temeridade procurar e tentar descobrir os fins impenetráveis de Deus.
8. Demais, vem-me ainda ao espírito que não devemos considerar uma única criatura separadamente, quando pesquisamos se as obras de Deus são perfeitas, mas de uma maneira geral todas as coisas em conjunto. Pois a mesma coisa que poderia talvez, com alguma forma de razão, parecer muito imperfeita, caso estivesse inteiramente só, apresenta-se muito perfeita em sua natureza, caso seja encarada como parte de todo este Universo. E, embora, desde que me propus a tarefa de duvidar de todas as coisas, eu tenha conhecido com certeza apenas minha existência e a de Deus, todavia também, já que reconheci o infinito poder de Deus, não poderia negar que ele não tenha produzido muitas outras coisas, ou, pelo menos, que não as possa produzir, de sorte que eu exista e seja colocado no mundo como parte da universalidade de todos os seres.
9. E, em seguida, olhando-me de mais perto e considerando quais são meus erros que apenas testemunham haver imperfeição em mim, descubro que dependem do concurso de duas causas, a saber, do poder de conhecer que existe em mim e do poder de escolher, ou seja, meu livre arbítrio; isto é, de meu entendimento e conjuntamente de minha vontade. Isso porque, só pelo entendimento, não asseguro nem nego coisa alguma, mas apenas concebo as ideias das coisas que posso assegurar ou negar. Ora, considerando-o assim precisamente, pode-se dizer que jamais encontraremos nele erro algum, desde que se tome a palavra erro em sua significação própria. E, ainda que haja talvez uma infinidade de coisas neste mundo das quais não tenho ideia alguma em meu entendimento, não se pode por isso dizer que ele seja privado dessas ideias como de algo que seja devido à sua natureza, mas somente que não as tem; porque, com efeito, não há razão alguma capaz de provar que Deus devesse dar-me uma faculdade de conhecer maior e mais ampla do que E, ainda que haja talvez uma infinidade de coisas neste mundo das quais não tenho ideia alguma em meu entendimento, não se pode por isso dizer que ele seja privado dessas ideias como de algo que seja devido à sua natureza, mas somente que não as tem; porque, com efeito, não há razão alguma capaz de provar que Deus devesse dar-me uma faculdade de conhecer maior e mais ampla do que aquela que me deu; e, por hábil e engenhoso operário que eu mo represente, nem por isso devo pensar que devesse pôr em cada uma de suas obras todas as perfeições que pôde pôr em algumas. Não posso tampouco me lastimar de que Deus não me tenha dado um livre arbítrio ou uma vontade bastante ampla e perfeita, visto que, com efeito, eu a experimento tão vaga e tão extensa que ela não está encerrada em quaisquer limites. E o que me parece muito notável neste ponto é que, de todas as outras coisas existentes em mim, não há nenhuma tão perfeita e tão extensa que eu não reconheça efetivamente que ela poderia ser ainda maior e mais perfeita. Pois, por exemplo, se considero a faculdade de conceber que há em mim, acho que ela é de uma extensão muito pequena e grandemente limitada e, ao mesmobtempo, eu me represento a ideia de outra faculdade muito mais ampla e mesmo infinita; e, pelo simples fato de que me posso representar sua ideia, conheço sem dificuldade que ela pertence à natureza de Deus. Da mesma maneira, se examino a memória ou a imaginação, ou qualquer outro poder, não encontro nenhum que não seja em mim muito pequeno e limitado e que em Deus não seja imenso e infinito. Resta tão somente a vontade, que eu sinto ser em mim tão grande, que não concebo absolutamente a ideia de nenhuma outra mais ampla e mais extensa: de sorte que é principalmente ela que me faz conhecer que eu trago a imagem e a semelhança de Deus. Pois, ainda que seja incomparavelmente maior em Deus do que em mim, quer por causa do conhecimento e do poder, que, aí se encontrando juntos, a tornam mais firme e mais eficaz, quer pó causa do objeto, na medida em que a vontade se dirige e se estende infinitamente a mais coisas; ela não me parece, todavia, maior se eu a considero formal e precisamente nela mesma. Pois consiste somente em que podemos fazer uma coisa ou deixar de fazer, isto é, afirmar ou negar, perseguir ou fugir ou, antes, somente em que, para afirmar ou negar, perseguir ou fugir às coisas que o entendimento nos propõe, agimos de tal maneira que não sentimos absolutamente que alguma força exterior nos obrigue a tanto. Pois, para que eu seja livre, não é necessário que eu seja indiferente na escolha de um ou de outro dos dois contrários; mas antes, quanto mais eu pender para um, seja porque eu conheça evidentemente que o bom e o verdadeiro aí se encontrem, seja porque Deus disponha assim o interior do meu pensamento, tanto mais livremente o escolherei e o abraçarei. E certamente a graça divina e o conhecimento natural, longe de diminuírem minha liberdade, antes a aumentam e a fortalecem. De maneira que esta indiferença que sinto, quando não sou absolutamente impelido para um lado mais do que para outro pelo peso de alguma razão, é o mais baixo grau de liberdade, e faz parecer mais uma carência no conhecimento do que uma perfeição na vontade; pois, se eu conhecesse sempre claramente o que é verdadeiro e o que é bom, nunca estaria em dificuldade para deliberar que juízo ou que escolha deveria fazer; e assim seria inteiramente livre sem nunca ser indiferente.
10. De tudo isso reconheço que nem o poder da vontade, o qual recebi de Deus, não é em si mesmo a causa de meus erros, pois é muito amplo e muito perfeito na sua espécie; nem tampouco o poder de entender ou de conceber: pois, nada concebendo senão por meio deste poder que Deus me conferiu para conceber, não há dúvida de que tudo o que concebo, concebo como é necessário e não é possível que nisso me engane. Donde nascem, pois, meus erros? A saber, somente de que, sendo a vontade muito mais ampla e extensa que o entendimento, eu não a contenho nos mesmos limites, mas estendo-a também às coisas que não entendo; das quais, sendo a vontade por si indiferente, ela se perde muito facilmente e escolhe o mal pelo bem ou o falso pelo verdadeiro. O que faz com que eu me engane e peque.
11. Por exemplo, examinando, estes dias passados, se alguma coisa existia no mundo e reconhecendo que, pelo simples fato de examinar esta questão, decorria necessariamente que eu próprio existia, não podia impedir-me de julgar que era verdadeira uma coisa que concebia tão claramente, não que a isso me achasse forçado por alguma causa exterior, mas somente porque a uma grande clareza que havia no meu entendimento seguiu-se uma forte inclinação em minha vontade; e fui levado a acreditar com tanto mais liberdade quanto me encontrei com menos indiferença. Ao contrário, agora não somente sei que existo na medida em que sou alguma coisa que pensa, mas apresenta-se também ao meu espírito certa ideia da natureza corpórea; o que faz com que eu duvide se esta natureza pensante que existe em mim, ou antes, pela qual eu sou o que sou, é diferente dessa natureza corpórea, ou ainda, se ambas não são senão uma mesma coisa. E suponho, aqui, que não conheço ainda nenhuma razão que me persuada de uma coisa mais do que de outra: donde se segue que sou inteiramente indiferente quanto a negá-lo ou assegurá-lo, ou mesmo ainda a abster-me de dar algum juízo a este respeito.
12. E essa indiferença não se estende somente às coisas das quais o entendimento não tem nenhum conhecimento, mas geralmente também a todas aquelas que ele não descobre com uma clareza perfeita no momento em que a vontade delibera sobre elas; pois, por prováveis que sejam as conjeturas que me tornam inclinado a julgar alguma coisa, o tão só conhecimento que tenho de que são apenas conjeturas e não razões certas e indubitáveis basta para me dar ocasião de julgar o contrário. Isto é o que experimentei suficientemente nesses dias passados, ao estabelecer como falso tudo o que tivera antes como muito verdadeiro, pelo simples fato de ter notado que se podia duvidar disso de alguma maneira.
13. Ora, se me abstenho de formular meu juízo sobre uma coisa, quando não a concebo com suficiente clareza e distinção, é evidente que o utilizo muito bem e que não estou enganado; mas, se me determino a negá-la ou a assegurá-la, então não me sirvo como devo de meu livre arbítrio; se garanto o que não é verdadeiro, é evidente que me engano, e até mesmo, ainda que julgue segundo a verdade, isto não ocorre senão por acaso e eu não deixo de falhar e de utilizar mal o meu livre arbítrio; pois a luz natural nos ensina que o conhecimento do entendimento deve sempre preceder a determinação da vontade. E é neste mau uso do livre arbítrio que se encontra a privação que constitui a forma do erro. A privação digo, encontra-se na operação na medida em que procede de mim; mas ela não se acha no poder que recebi de Deus, nem mesmo na operação na medida em que ela depende dele. Pois não tenho certamente nenhum motivo de me lastimar pelo fato de que Deus não me deu uma inteligência mais capaz, ou uma luz natural maior do que aquela que dele recebi, posto que, com efeito, é próprio do entendimento finito não compreender uma infinidade de coisas e próprio de um entendimento criado o ser finito: mas tenho todos os motivos de lhe render graças pelo fato de que, embora jamais me devesse algo, me tenho dado, não obstante, todo o pouco de perfeição que existe em mim; estando bem longe de conceber sentimentos tão injustos como o de imaginar que ele me tirou ou reteve injustamente as outras perfeições que não me deu. Não tenho também motivo de me lastimar do fato de me haver dado uma vontade mais ampla do que o entendimento, uma vez que, consistindo a vontade em apenas uma coisa, e sendo seu sujeito como que indivisível, parece que sua natureza é tal que dela nada se poderia tirar sem destruí-la; e, certamente, quanto maior for ela, mais tenho que agradecer a bondade daquele que ma deu. E, enfim, não devo também lamentar-me de que Deus concorra comigo para formar os atos dessa vontade, isto é, os juízos nos quais eu me engano, porque esses são inteiramente verdadeiros e absolutamente bons na medida em que dependem de Deus; e há, de alguma forma, mais perfeição em minha natureza, pelo fato de que posso formá-los, do que se não o pudesse. Quanto à privação que consiste na única razão formal do erro e do pecado, não tem necessidade de nenhum concurso de Deus, já que não é uma coisa ou um ser e que, se a relacionamos a Deus como à sua causa, ela não deverá ser chamada privação mas somente negação, segundo o significado que se atribui a essas palavras na Escola.
14. Pois, com efeito, não é uma imperfeição em Deus o fato de ele me haver concedido a liberdade de dar meu juízo ou de não o dar sobre certas coisas, a cujo respeito ele não pôs um claro e distinto saber em meu entendimento; mas sem dúvida, é em mim uma imperfeição o fato de eu não a usar corretamente e de dar temerariamente meu juízo sobre coisas que eu concebo apenas com obscuridade e confusão.
15. Vejo, no entanto, que era fácil a Deus fazer de sorte que eu nunca me enganasse, embora permanecesse livre e com um conhecimento limitado, a saber, dando a meu entendimento uma clara e distinta inteligência de todas as coisas a respeito das quais eu devia alguma vez deliberar, ou, então, se apenas houvesse gravado tão profundamente em minha memória a resolução de nunca julgar a respeito de alguma coisa sem concebê-la clara e distintamente de sorte que eu nunca a pudesse esquecer. E noto efetivamente que, enquanto me considero inteiramente só, como se apenas eu existisse no mundo, teria sido muito mais perfeito do que sou caso Deus me houvesse criado de modo que eu nunca falhasse. Mas não posso por isso negar que não seja, de alguma maneira, a maior perfeição em todo o Universo o fato de algumas de suas partes não serem isentas de defeitos, do que se fossem todas semelhantes. E não tenho nenhum direito de me lastimar se Deus, tendo-me colocado no mundo, não me tenha querido colocar na ordem das coisas mais nobres e das mais perfeitas; tenho mesmo motivo de rejubilar porque, se ele não me concedeu a virtude de jamais falhar através do meio a que me referi acima, que depende de um claro e evidente conhecimento de todas as coisas a respeito das quais posso deliberar, ele ao menos deixou em meu poder o outro meio, que é reter firmemente a resolução de jamais formular meu juízo a respeito de coisas cuja verdade não conheço claramente. Pois, embora eu note essa fraqueza em minha natureza, de não poder ligar continuamente meu espírito a um mesmo pensamento, posso, todavia, por uma meditação atenta e amiúde reiterada, imprimi-la tão fortemente na memória, que não deixe jamais de lembrar-me, todas as vezes de que tiver necessidade, e adquirir, desta maneira, o hábito de nunca falhar. E, na medida em que é nisto que consiste a maior e principal perfeição do homem, considero não ter ganho pouco com esta Meditação, ao haver descoberto a causa das falsidades e dos erros.
16. E, certamente, não pode haver outra além daquela que expliquei; pois, todas as vezes que retenho minha vontade nos limites de meu conhecimento, de tal modo que ela não formule juízo algum senão a respeito das coisas que lhe são clara e distintamente representadas pelo entendimento, não pode ocorrer que eu me engane; porque toda concepção clara e distinta é sem dúvida algo de real e de positivo, e portanto não pode ter sua origem no nada, mas deve ter necessariamente Deus como seu autor; Deus, digo, que, sendo soberanamente perfeito, não pode ser causa de erro algum; e, por conseguinte, é preciso concluir que uma tal concepção ou um tal juízo é verdadeiro.
17. De resto, não somente aprendi hoje o que devo evitar para não mais falhar, mas também o que devo fazer para chegar ao conhecimento da verdade. Pois, certamente, chegarei a tanto se demorar suficientemente minha atenção sobre todas as coisas que conceber perfeitamente e se as separar das outras que não compreendo senão com confusão e obscuridade. E disto, doravante, cuidarei zelosamente. O objetivo da Quarta Meditação é: Compreender as causas do erro. Identificar os mecanismos que levam a mente humana a cometer falhas de julgamento. Estabelecer princípios para evitar o erro e alcançar a verdade. Reforçar a importância da razão, da clareza e da distinção na formação de ideias verdadeiras. Demonstrar a necessidade da existência de Deus como um garantidor da verdade.
MEDITAÇÃO QUINTA - DA ESSÊNCIA DAS COISAS MATERIAIS; E, NOVAMENTE, DE DEUS, QUE ELE EXISTE.
1. Restam-me muitas outras coisas a examinar, concernentes aos atributos de Deus e à minha própria natureza, isto é, ao meu espírito: mas retomarei em outra ocasião, talvez, a sua pesquisa. Agora, após haver notado o que cumpre fazer ou evitar para chegar ao conhecimento da verdade, o que tenho principalmente a fazer é tentar sair e desembaraçar-se de todas as dúvidas em que mergulhei nesses dias passados e ver se não é possível conhecer nada de certo no tocante às coisas materiais.
2. Mas, antes de examinar se há tais coisas que existam fora de mim, devo considerar suas ideias na medida em que se encontram em meu pensamento e ver quais são distintas e quais são confusas.
3. Em primeiro lugar, imagino distintamente esta quantidade que os filósofos chamam vulgarmente de quantidade contínua, ou a extensão em lonjura, largura e profundidade que há nessa quantidade ou, antes, na coisa à qual ela é atribuída. Demais, posso enumerar nela muitas partes diversas e atribuir a cada uma dessas partes toda sorte de grandezas, de figuras, de situações e de movimentos; e enfim, posso consignar a cada um desses movimentos toda espécie de duração.
4. E não conheço estas coisas com distinção apenas quando as considero em geral; mas, também, por pouco que eu a isso aplique minha atenção, concebo uma infinidade de particularidades referentes aos números, às figuras, aos movimentos e a outras coisas semelhantes, cuja verdade se revela com tanta evidência e se acorda tão bem com minha natureza que, quando começo a descobri-las, não parece que aprendo algo de novo, mas, antes, que me recordo de algo que já sabia anteriormente, isto é, que percebo coisas que estavam já no meu espírito, embora eu ainda não tivesse voltado meu pensamento para elas.
5. E o que, aqui, estimo mais considerável é que encontro em mim uma infinidade de ideias de certas coisas que não podem ser consideradas um puro nada, embora talvez elas não tenham nenhuma existência fora de meu pensamento, e que não são fingidas por mim, conquanto esteja em minha liberdade pensá-las ou não pensá-las; mas elas possuem suas naturezas verdadeiras e imutáveis. Como, por exemplo, quando imagino um triângulo, ainda que não haja talvez em nenhum lugar do mundo, fora de meu pensamento, tal figura, e que nunca tenha havido alguma, não deixa, entretanto, de haver certa natureza ou forma, ou essência determinada, dessa figura, a qual é imutável e eterna, que eu não inventei absolutamente e que não depende, de maneira alguma, de meu espírito; como parece, pelo fato de que se pode demonstrar diversas propriedades desse triângulo, a saber, que os três ângulos são iguais a dois retos, que o maior ângulo é oposto ao maior lado e outras semelhantes, as quais agora, quer queira, quer não, reconheço mui claramente e mui evidentemente estarem nele, ainda que não tenha antes pensado nisto de maneira alguma, quando imaginei pela primeira vez um triângulo; e, portanto, não se pode dizer que eu as tenha fingido e inventado.
6. E aqui só posso me objetar que talvez essa ideia de triângulo tenha vindo ao meu espírito por intermédio de meus sentidos, porque vi algumas vezes corpos de figura triangular; pois posso formar em meu espírito uma infinidade de outras figuras, a cujo respeito não se pode alimentar a menor suspeita de que jamais tenham caído sob os sentidos e não deixo, todavia, de poder demonstrar diversas propriedades relativas à sua natureza, bem como à do triângulo: as quais devem ser certamente todas verdadeiras, visto que as concebo claramente. E, portanto, elas são alguma coisa e não um puro nada; pois é muito evidente que tudo o que é verdadeiro é alguma coisa e já demonstrei amplamente acima que todas as coisas que conheço clara e distintamente são verdadeiras. E, conquanto não o tivesse demonstrado, todavia a natureza de meu espírito é tal que não me poderia impedir de julgá-las verdadeiras enquanto as concebo clara e distintamente. E me recordo de que, mesmo quando estava ainda fortemente ligado aos objetos dos sentidos, tivera entre as mais constantes verdades aquelas que eu concebia clara e distintamente no que diz respeito às figuras, aos números e às outras coisas que pertencem à Aritmética e à Geometria.
7. Ora, agora, se do simples fato de que posso tirar de meu pensamento a ideia de alguma coisa segue-se que tudo quanto reconheço pertencer clara e distintamente a esta coisa pertence-lhe de fato, não posso tirar disto um argumento e uma prova demonstrativa da existência de Deus? É certo que não encontro menos em mim sua ideia, isto é, a ideia de um ser soberanamente perfeito, do que a ideia de qualquer figura ou de qualquer número que seja. E não conheço menos clara e distintamente que uma existência atual e eterna pertence à sua natureza do que conheço que tudo quanto posso demonstrar de figura ou de qualquer número pertence verdadeiramente à naturezadessa figura ou desse número. E, portanto, ainda que tudo o que concluí nas Meditações anteriores não fosse de modo algum verdadeiro, a existência de Deus deveapresentar-se em meu espírito ao menos como tão certa quanto considerei até agora todas as verdades das Matemáticas, que se referem apenas aos números e às figuras: embora, na verdade, isto não pareça de início inteiramente manifesto e se afigure ter alguma aparência de sofisma. Pois, estando habituado em todas as outras coisas a fazer distinçãoentre a existência e a essência, persuado-me facilmente de que a existência pode ser separada da essência de Deus e de que, assim, é possível conceber Deus como não existindo atualmente. Mas, não obstante, quando penso nisso com maior atenção, verifico claramente que a existência não pode ser separada da essência de Deus, tanto quanto da essência de um triângulo retilíneo não pode ser separada a grandeza de seus três ângulos iguais a dois retos ou, da ideia de uma montanha, a ideia de um vale; de sorte que não sinto menos repugnância em conceber um Deus, isto é, um ser soberanamente perfeito ao qual falte existência, isto é, ao qual falte alguma perfeição, do que em conceber uma montanha que não tenha vale. 8. Mas, ainda que, com efeito, eu não possa conceber um Deus sem existência, tanto quanto uma montanha sem vale, todavia, como do simples fato de eu conceber uma montanha com vale não se segue que haja qualquer montanha no mundo, do mesmo modo, embora eu conceba Deus com existência, parece não decorrer daí que haja algum Deus existente: pois meu pensamento não impõe necessidade alguma às coisas; e como só depende de mim o imaginar um cavalo alado, ainda que não haja nenhum que disponha de asas, assim eu poderia, talvez, atribuir existência a Deus, ainda que não houvesse Deus algum existente. Mas não é assim, é que aqui há um sofisma escondido sob a aparência desta objeção: pois pelo fato de que não posso conceber uma montanha sem vale não se segue que haja montanha alguma nem vale algum, mas somente que a montanha e o vale, quer existam quer não, não podem, de maneira alguma, ser separados um do outro; ao passo que, do simples fato de eu não poder conceber Deus sem existência, segue-se que a existência lhe é inseparável, e, portanto, que existe verdadeiramente: não que meu pensamento possa fazer que isso seja assim, e que imponha às coisas qualquer necessidade; mas, ao contrário, porque a necessidade da própria coisa, a saber, da existência de Deus, determina meu pensamento a concebê-lo dessa maneira. Pois não está em minha liberdade conceber um Deus sem existência, isto é, um ser soberanamente perfeito sem uma soberana perfeição, como me é dada a liberdade de imaginar um cavalo sem asas ou com asas.
9. E não se deve dizer aqui que é, na verdade, necessário eu confessar que Deus existe após ter suposto que ele possui todas as sortes de perfeições, posto que a existência é uma delas, mas que, com efeito, minha primeira suposição não era necessária; da mesma maneira que não é necessário pensar que todas as figuras de quatro lados podem inscrever-se no círculo, mas que, supondo que tenho este pensamento, sou obrigado a confessar que o romboide pode inscrever-se no círculo, já que é uma figura de quatro lados; e, assim, serei obrigado a confessar uma coisa falsa. Não se deve, digo, alegar isto: pois, ainda que não seja necessário que eu incida jamais em algum pensamento de Deus, todas às vezes, no entanto, que me ocorrer pensar em um ser primeiro e soberano, e tirar, por
assim dizer, sua ideia do tesouro de meu espírito, é necessário que eu lhe atribua todas as espécies de perfeição, embora eu não chegue a enumerá-las todas e a aplicar minha atenção a cada uma delas em particular. E esta necessidade é suficiente para me fazer concluir, depois que reconheci ser a existência uma perfeição, que este ser primeiro e soberano existe verdadeiramente: do mesmo modo que não é necessário que jamais eu imagine triângulo algum; mas todas as vezes que quero considerar uma figura retilínea composta somente de três ângulos é absolutamente necessário que eu lhe atribua todas as coisas que servem para concluir que seus três ângulos não são maiores do que dois retos, ainda que talvez não considere então isto em particular. Mas quando examino que figuras são capazes de ser inscritas no círculo, não é de maneira alguma necessário que eu pense que todas as figuras de quatro lados se encontram neste rol; pelo contrário, nem mesmo posso fingir que isso ocorra enquanto eu nada quiser receber em meu pensamento que não possa conceber clara e distintamente. E, por conseguinte, há uma grande diferença entre as falsas suposições, como essa, e as verdadeiras ideias que nasceram comigo e, dentre as quais, a primeira e principal é a de Deus.
10. Pois, com efeito, reconheço de muitas maneiras que esta ideia não é de modo algum algo fingido ou inventado, que dependa somente de meu pensamento, mas que é a imagem de uma natureza verdadeira e imutável. Primeiramente, porque eu nada poderia conceber, exceto Deus só, a cuja essência a existência pertence com necessidade. E, em seguida, também, porque não me é possível conceber dois ou muitos deuses da mesma maneira. E, posto que há um agora que existe, vejo claramente que é necessário que ele tenha existido anteriormente por toda a eternidade e que exista eternamente para o futuro. E, enfim, porque conheço uma infinidade de outras coisas em Deus, das quais nada posso diminuir nem mudar.
11. De resto, de qualquer prova e argumento que eu me sirva, cumpre sempre retornar a este ponto, isto é, que são somente as coisas que concebo clara e distintamente que têm a força de me persuadir inteiramente. E, embora, entre as coisas que concebo dessa maneira, haja na verdade algumas manifestamente conhecidas de qualquer, e haja outras também que não se revelam senão àqueles que as consideram de mais perto e que as examinam mais exatamente; todavia, uma vez descobertas, não são consideradas menos certas umas do que as outras. Como, por exemplo, em todo triângulo retângulo, ainda que não pareça tão facilmente, de início, que o quadrado da base é igual aos quadrados dos dois outros lados, como é evidente que essa base é oposta ao maior ângulo, não obstante, uma vez que isto foi reconhecido, ficamos persuadidos tanto da verdade de um como da de outro. E no que concerne a Deus, certamente, se meu espírito não estivesse prevenido por quaisquer prejuízos e se meu pensamento não se
encontrasse distraído pela presença contínua das imagens das coisas sensíveis, não haveria coisa alguma que eu conhecesse melhor nem mais facilmente do que ele. Pois haverá algo por si mais claro e mais manifesto do que pensar que há um Deus, isto é, um ser soberano e perfeito, em cuja ideia, e somente nela, a existência necessária ou eterna está incluída e, por conseguinte, que existe?
12. E, conquanto, para bem conceber essa verdade, eu tivesse necessitado de grande aplicação de espírito, presentemente, todavia, estou mais seguro dela do que de tudo quanto me parece mais certo: mas, além disso, noto que a certeza de todas as outras coisas dela depende tão absolutamente que, sem esse conhecimento, é impossível jamais conhecer algo perfeitamente.
13. Pois, ainda que eu seja de tal natureza que, tão logo compreenda algo bastante clara e distintamente, sou naturalmente levado a acredita-lo verdadeiro; no entanto,já que sou também de tal natureza que não posso manter sempre o espírito ligado a uma mesma coisa, e que amiúde me recordo de ter julgado uma coisa verdadeira, quando deixo de considerar as razões que me obrigaram a julgá-la dessa maneira, pode acontecer que nesse ínterim outras razões se me apresentem, as quais me fariam facilmente mudar de opinião se eu ignorasse que há um Deus. E, assim, eu jamais teria uma ciência verdadeira e certa de qualquer coisa que seja, mas somente opiniões vagas e inconstantes.
14. Como, por exemplo, quando considero a natureza do triângulo, conheço evidentemente, eu que sou um pouco versado em Geometria, que seus três ângulos são iguais a dois retos e não me é possível não acreditar nisso enquanto aplico meu pensamento à sua demonstração; mas, tão logo eu o desvie dela, embora me recorde de tê-la claramente compreendido, pode ocorrer facilmente que eu duvide de sua verdade caso ignore que há um Deus. Pois posso persuadir-me de ter sido feito de tal modo pela natureza que possa enganar-me facilmente, mesmo nas coisas que acredito compreender com mais evidência e certeza; principalmente, visto que me lembro de haver muitas vezes estimado muitas coisas como verdadeiras e certas, que, em seguida, outras razões me levaram a julgar absolutamente falsas.
15. Mas, após ter reconhecido haver um Deus, porque ao mesmo tempo reconheci também que todas as coisas dependem dele e que ele não é enganador, e que, em seguida a isso, julguei que tudo quanto concebo clara e distintamente não pode deixar de ser verdadeiro: ainda que não mais pense nas razões pelas quais julguei tal ser verdadeiro, desde que me lembre de tê-lo compreendido clara e distintamente, ninguém pode apresentar-me razão contrária alguma que me faça jamais colocá-lo em dúvida; e, assim, tenho dele uma ciência certa e verdadeira. E esta mesma ciência se estende também a
todas as outras coisas que me lembro ter outrora demonstrado, como as verdades da Geometria e outras semelhantes: pois, que me poderão objetar, para obrigar-me a colocá-las em dúvida? Dir-me-ão que minha natureza é tal que sou muito sujeito a enganar-me? Mas já sei que me não posso enganar nos juízos cujas razões conheço claramente. Dir-me-ão que outrora tive muitas coisas por verdadeiras e certas, as quais mais tarde reconheci serem falsas? Mas eu não havia conhecido clara nem distintamente tais coisas e, não conhecendo ainda esta regra pela qual me certifico da verdade, era levado a acreditar nelas por razões que reconheci depois serem menos fortes do que então imaginara. O que mais poderão, pois, objetar-me? Que talvez eu durma (como eu mesmo me objetei acima) ou que todos os pensamentos que tenho atualmente não são mais verdadeiros do que os sonhos que imaginamos ao dormir? Mas, mesmo que estivesse dormindo, tudo o que se apresenta a meu espírito com evidência é absolutamente verdadeiro. E, assim, reconheço muito claramente que a certeza e a verdade de toda ciência dependem do tão só conhecimento do verdadeiro Deus: de sorte que, antes que eu o conhecesse, não podia saber perfeitamente nenhuma outra coisa. E, agora que o conheço, tenho o meio de adquirir uma ciência perfeita no tocante a uma infinidade de coisas, não somente das que existem nele mas também das que pertencem à natureza corpórea, na medida em que ela pode servir de objeto às demonstrações dos geômetras, os quais não se preocupam, de modo algum, com sua existência. Nesta Meditação, Descartes conclui que a existência de Deus é inerente à sua natureza, ou seja, é impossível que Deus não exista. Ele argumenta que, se concebemos Deus como um ser perfeito, então a sua existência é necessária para a perfeição que lhe atribuímos. Descartes também estabelece que, como as ideias claras e distintas são verdadeiras, então a ideia de Deus, que é clara e distinta, é também verdadeira. A existência de Deus é inseparável da sua natureza como ser perfeito. A ideia de Deus, como uma ideia clara e distinta, é uma verdade. Portanto, Deus existe.
MEDITAÇÃO SEXTA - DA EXISTÊNCIA DAS COISAS MATERIAIS E DA DISTINÇÃO REALENTRE A ALMA E O CORPO DO HOMEM
1. Só me resta agora examinar se existem coisas materiais: e certamente, ao menos, já sei que as pode haver, na medida em que são consideradas como objeto das demonstrações de Geometria, visto que, dessa maneira, eu as concebo mui clara e distintamente. Pois não há dúvida de que Deus tem o poder de produzir todas as coisas que sou capaz de conceber com distinção; e nunca julguei que lhe fosse impossível fazer algo, a não ser quando encontrasse contradição em poder concebê-la. Demais, a faculdade de imaginar, que existe em mim e da qual vejo por experiência que me sirvo quando me aplico à consideração das coisas materiais, é capaz de me persuadir da existência delas: pois, quando considero atentamente o que é a imaginação, verifico que ela nada mais é que uma aplicação da faculdade que conhece ao corpo que lhe é intimamente presente e, portanto, que existe.
2. E, para tornar isso mais manifesto, noto primeiramente a diferença que há entre a imaginação e a pura intelecção, ou concepção. Por exemplo, quando imagino um triângulo, não o concebo apenas como uma figura composta e determinada por três linhas, mas, além disso, considero essas três linhas como presentes pela força e pela aplicação interior de meu espírito; e é propriamente isso que chamo imaginar. Quando quero pensar em um quiliógono, concebo na verdade que é uma figura composta de mil lados tão facilmente quanto concebo que um triângulo é uma figura composta de apenas três lados; mas não posso imaginar os mil lados de um quiliógono como faço com os três lados de um triângulo, nem, por assim dizer, vê-los como presentes com os olhos de meu espírito. E conquanto segundo o costume que tenho de me servir sempre de minha imaginação, quando penso nas coisas corpóreas, ocorra que, concebendo um quiliógono, eu me represente confusamente alguma figura, é, todavia, evidente que essa figura não é um quiliógono, posto que em nada difere daquela que me representaria se pensasse em um miriágono, ou em qualquer outra figura de muitos lados; e que ela não serve, de maneira alguma, para descobrir as propriedades que estabelecem a diferença entre o quiliógono e os demais polígonos.
3. Quando se trata de considerar um pentágono, é bem verdade que posso conceber sua figura, assim como a do quiliógono, sem o auxílio da imaginação; mas posso também imaginá-la aplicando a atenção de meu espírito a cada um de seus cinco lados e, ao mesmo tempo, à área ou ao espaço que eles encerram.
Assim, conheço claramente que tenho necessidade de particular contenção de espírito para imaginar, da qual não me sirvo absolutamente para conceber; e esta particular contenção de espírito mostra evidentemente a diferença que há entre a imaginação e a intelecção ou concepção pura.
4. Noto, além disso, que esta virtude de imaginar que existe em mim, na medida em que difere do poder de conceber, não é de modo algum necessária à minha natureza ou à minha essência, isto é, à essência de meu espírito; pois, ainda que não a possuísse de modo algum, está fora de dúvida que eu permaneceria sempre o mesmo que sou atualmente: donde me parece que se pode concluir que ela depende de algo que difere de meu espírito. E concebo facilmente que, se algum corpo existe ao qual meu espírito esteja conjugado e unido de tal maneira que ele possa aplicar-se a considerá-lo quando lhe aprouver, pode acontecer que por este meio ele imagine as coisas corpóreas: de sorte que esta maneira de pensar difere somente da pura intelecção no fato de que o espírito, concebendo, volta-se de alguma forma para si mesmo e considera algumas das ideias que ele tem em si; mas, imaginando, ele se volta para o corpo e considera nele algo de conforme à ideia que formou de si mesmo ou que recebeu pelos sentidos. Concebo, digo, facilmente que a imaginação pode realizar-se dessa maneira, se é verdade que há corpos; e, uma vez que não posso encontrar nenhuma outra via para mostrar como ela se realiza, conjeturo daí provavelmente que os há: mas não é senão provavelmente e, embora examine cuidadosamente todas as coisas, não verifico, no entanto, que, desta ideia distinta da natureza corporal que tenho em minha imaginação, possa tirar algum argumento que conclua necessariamente a existência de algum corpo.
5. Ora, acostumei-me a imaginar muitas coisas além desta natureza corpórea que é o objeto da Geometria, a saber, as cores, os sons, os sabores, a dor e outras coisas semelhantes, embora menos distintamente. E na medida em que percebo muito melhor tais coisas pelos sentidos, por intermédio dos quais, e da memória, elas parecem ter chegado até minha imaginação, creio que, para examiná-las mais comodamente, vem a propósito examinar ao mesmo tempo o que é sentir, e ver se, das ideias que recebo em meu espírito por este modo de pensar, que chamo sentir, posso tirar alguma prova certa da existência das coisas corpóreas.
6. E, primeiramente, recordarei em minha memória quais são as coisas que até aqui considerei como verdadeiras, tendo-as recebido pelos sentidos, e sobre que fundamentos estava apoiada minha crença. E, depois, examinarei as razões que me obrigaram em seguida a colocá-las em dúvida. E, enfim, considerarei o que devo a respeito delas agora acreditar.
7. Primeiramente, pois, senti que possuía cabeça, mãos, pés e todos os outros membros de que é composto este corpo que considerava como parte de mim mesmo ou, talvez, como o todo. Demais, senti que esse corpo estava colocado entre muitos outros, dos quais era capaz de receber diversas comodidades e incomodidades e advertia essas comodidades por certo sentimento de prazer ou de voluptuosidade e essas incomodidades por um sentimento de dor. E, além desse prazer e dessa dor, sentia também em mim a fome, a sede e outros semelhantes apetites, como também certas inclinações corporais para a alegria, a tristeza, a cólera e outras paixões semelhantes; e, no exterior, além da extensão, das figuras, dos movimentos dos corpos, notava neles a dureza, o calor e todas as outras qualidades que se revelam ao tato. Demais, aí notava a luz, cores, odores, sabores e sons, cuja variedade me fornecia meios de distinguir o céu, a terra, o mar e geralmente todos os outros corpos uns dos outros.
8. E, por certo, considerando as ideias de todas essas qualidades que se apresentavam ao meu pensamento, e as quais eram as únicas que eu sentia própria e imediatamente, não era sem razão que eu acreditava sentir coisas inteiramente diferentes de meu pensamento, a saber, corpos de onde procediam essas ideias. Pois eu experimentava que elas se apresentavam ao meu pensamento sem que meu consentimento fosse requerido para tanto, de sorte que não podia sentir objeto algum, por mais vontade que tivesse, se ele não se encontrasse presente ao órgão de um de meus sentidos; e não estava de maneira alguma em meu poder não o sentir quandoele aí estivesse presente.
9. E, dado que as ideias que recebia pelossentidos eram muito mais vivas, mais expressas e mesmo, à sua maneira, mais distintas do que qualquer uma daquelas que eu mesmo podia simular, em meditando, ou do que as que encontrava impressas em minha memória, parecia que não podiam proceder de meu espírito; de sorte que era necessário que fossem causadas em mim por quaisquer outras coisas. Coisas das quais não tendo eu nenhum conhecimento senão o que me forneciam essas mesmas ideias, outra coisa me podia vir ao espírito, só que essas coisas eram semelhantes às ideias que elas causavam.
10. E já que eu me lembrava também que me servira mais dos sentidos do que da razão e reconhecia que as ideias que eu formava por mim mesmo não eram tão expressas quanto aquelas que eu recebia dos sentidos e, mesmo, que eram, as mais das vezes, compostas de partes destas, eu me persuadia facilmente de que não havia nenhuma ideia em meu espírito que não tivesse antes passado pelos meus sentidos.
11. Não era também sem alguma razão que eu acreditava que este corpo (que, por certo direito particular, eu chamava de meu) me pertencia mais propriamente e mais estreitamente do que qualquer outro. Pois, com efeito, jamais eu podia ser separado dele como dos outros corpos; sentia nele e por ele todos os meus apetites e todas as minhas afecções; e, enfim, eu era tocado por sentimentos de prazer e de dor em suas partes e não nas dos outros corpos que são separados dele.
12. Mas, quando examinava por que desse não sei que sentimento de dor segue a tristeza do espírito, e do sentimento de prazer nasce a alegria, ou, ainda, por que esta não sei que emoção do estômago, que chamo fome, nos dá vontade de comer, e a secura da garganta nos dá desejo de beber, e assim por diante, não podia apresentar nenhuma razão, senão que a natureza mo ensinava dessa maneira; pois não há, certamente, qualquer afinidade nem qualquer relação (ao menos que eu possa compreender) entre essa emoção do estômago e o desejo de comer, assim como entre o sentimento da coisa que causa a dor e o pensamento de tristeza que esse sentimento engendra. E, da mesma maneira, parecia-me que eu aprendera da natureza todas as outras coisas que eu julgava no tocante aos objetos dos sentidos; porque eu notava que os juízos, que eu me acostumara a formular a respeito desses objetos, formavam-se em mim antes que eu tivesse o lazer de pesar e considerar quaisquer razões que me pudessem obrigar a formulá-los.
13. Mas, depois, muitas experiências arruinaram, pouco a pouco, todo o crédito que eu dera aos sentidos. Pois observei muitas vezes que torres, que de longe se me afiguravam redondas, de perto pareciam-me quadradas, e que colossos, erigidos sobre os mais altos cimos dessas torres, pareciam-me pequenas estátuas quando as olhava de baixo; e, assim, em uma infinidade de outras ocasiões, achei erros nos juízos fundados nos sentidos exteriores. E não somente nos sentidos exteriores, mas mesmo nos interiores: pois haverá coisa mais íntima ou mais interior do que a dor? E, no entanto, aprendi outrora de algumas pessoas, que tinham os braços e as pernas cortados, que lhes parecia ainda, algumas vezes, sentir dores nas partes que lhes haviam sido amputadas; isto me dava motivo de pensar que eu não podia também estar seguro de ter dolorido algum de meus membros, embora sentisse dores nele.
14. E a essas razões de dúvida acrescentei ainda, pouco depois, duas outras bastante gerais. A primeira é que jamais acreditei sentir algo, estando acordado, que não pudesse, também, algumas vezes, acreditar sentir, ao estar dormindo; e como não creio que as coisas que me parece que sinto ao dormir procedam de quaisquer objetos existentes, não via por que devia ter antes essa crença no tocante àquelas que me parece que sinto ao estar acordado. E a segunda é que, não conhecendo ainda ou, antes, fingindo não conhecer o autor de meu ser, nada via que pudesse impedir que eu tivesse sido feito de tal maneira pela natureza que me enganasse mesmo nas coisas que me pareciam ser as mais verdadeiras.
15. E, quanto às razões que me haviam anteriormente persuadido da verdade das coisas sensíveis, não tinha muita dificuldade em rejeitá-las. Pois, parecendo a natureza levar-me a muitas coisas de que a razão me desviava, não acreditava dever confiar muito nos ensinamentos dessa natureza. E, embora as ideias que recebo pelos sentidos não dependam de minha vontade, não pensava que se devesse, por isso, concluir que procediam de coisas diferentes de mim, posto que talvez possa haver em mim alguma faculdade (apesar de ter até agora permanecido desconhecida para mim) que seja a causa dessas ideias e que as produza.
16. Mas, agora que começo a melhor conhecer-me a mim mesmo e a descobrirmais claramente o autor de minha origem, não penso, na verdade, que deva temerariamente admitir todas as coisas que os sentidos parecem ensinar-nos, mas não penso tampouco que deva colocar em dúvida todas em geral.
17. E, primeiramente, porque sei que todas as coisas que concebo clara e distintamente podem ser produzidas por Deus tais como as concebo, basta que possa conceber clara e distintamente uma coisa sem outra para estar certo de que uma é distinta ou diferente da outra, já que podem ser postas separadamente, ao menos pela onipotência de Deus; e não importa por que potência se faça essa separação, para que seja obrigado a julgá-las diferentes. E, portanto, pelo próprio fato de que conheço com certeza que existo, e que, no entanto, noto que não pertence necessariamente nenhuma outra coisa à minha natureza ou à minha essência, a não ser que sou uma coisa que pensa, concluo efetivamente que minha essência consiste somente em que sou uma coisa que pensa ou uma substância da qual toda a essência ou natureza consiste apenas em pensar. E, embora talvez (ou, antes, certamente, como direi logo mais) eu tenha um corpo ao qual estou muito estreitamente conjugado, todavia, já que, de um lado, tenho uma ideia clara e distinta de mim mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa pensante e inextensa, e que, de outro, tenho uma ideia distinta do corpo, na medida em que é apenas uma coisa extensa e que não pensa, é certo que este eu, isto é, minha alma, pela qual eu sou o que sou, é inteira e verdadeiramente distinta de meu corpo e que ela pode ser ou existir sem ele.
18. Ainda mais, encontro em mim faculdades de pensar totalmente particulares e distintas de mim, as faculdades de imaginar e de sentir, sem as quais posso de fato conceber-me clara e distintamente por inteiro, mas que não podem ser concebidas sem mim, isto é, sem uma substância inteligente à qual estejam ligadas. Pois, na noção que temos dessas faculdades, ou (para servir-me dos termos da Escola) no seu conceito formal, elas encerram alguma espécie de intelecção: donde concebo que são distintas de mim, como as figuras, os movimentos e os outros modos ou acidentes dos corpos o são dos próprios corpos que os sustentam.
19. Reconheço, também, em mim algumas outras faculdades, como as de mudar de lugar, de colocar-me em múltiplas posturas e outras semelhantes, que não podem ser concebidas, assim como as precedentes, sem alguma substância à qual estejam ligadas, e nem, por conseguinte, existir sem ela; mas é muito evidente que essas faculdades, se é verdade que existem, devem ser ligadas a alguma substância corpórea ou extensa, e não a uma substância inteligente, posto que, no conceito claro e distinto dessas faculdades, há de fato alguma sorte de extensão que se acha contida, mas de modo nenhum qualquer inteligência. Demais, encontra-se em mim certa faculdade passiva de sentir, isto e, de receber e conhecer as ideias das coisas sensíveis; mas ela me seria inútil, e dela não me poderia servir absolutamente, se não houvesse em mim, ou em outrem, uma faculdade ativa, capaz de formar e de produzir essas ideias. Ora, essa faculdade ativa não pode existir em mim enquanto sou apenas uma coisa que pensa, visto que ela não pressupõe meu pensamento, e, também, que essas ideias me são frequentemente representadas sem que eu em nada contribua para tanto e mesmo, amiúde, mau grado meu; é preciso, pois, necessariamente, que ela exista em alguma substância diferente de mim, na qual toda a realidade que há objetivamente nas ideias por ela produzidas esteja contida formal ou eminentemente (como notei antes). E esta substância é ou um corpo, isto é, uma natureza corpórea, na qual está contida formal e efetivamente tudo o que existe objetivamente e por representação nas ideias; ou então é o próprio Deus, ou alguma outra criatura mais nobre do que o corpo, na qual isto mesmo esteja contido eminentemente.
20. Ora, não sendo Deus de modo algum enganador, é muito patente que ele não me envia essas ideias imediatamente por si mesmo, nem também por intermédio de alguma criatura, na qual a realidade das ideias não esteja contida formalmente, mas apenas eminentemente. Pois, não me tendo dado nenhuma faculdade para conhecer que isto seja assim, mas, ao contrário, uma fortíssima inclinação para crer que elas me são enviadas pelas coisas corporais ou partem destas, não vejo como se poderia desculpa-lo de embaimento se, com efeito, essas ideias partissem de outras causas que não coisas corpóreas, ou fossem por elas produzidas. E, portanto, é preciso confessar que há coisas corpóreas que existem.
21. Talvez elas não sejam, todavia, inteiramente como nós as percebemos pelos sentidos, pois essa percepção dos sentidos é muito obscura e confusa em muitas coisas; mas, ao menos, cumpre confessar que todas as coisas que, dentre elas, concebo clara e distintamente, isto é, todas as coisas, falando em geral, compreendidas no objeto da Geometria especulativa, aí se encontram
verdadeiramente. Mas, no que se refere a outras coisas, as quais ou são apenas particulares, por exemplo, que o sol seja de tal grandeza e de tal figura, etc., ou são concebidas menos claramente e menos distintamente, como a luz, o som, a dor e outras semelhantes, é certo que, embora sejam elas muito duvidosas e incertas, todavia, do simples fato de que Deus não é enganador e que, por conseguinte, não permitiu que pudesse haver alguma falsidade nas minhas opiniões, que não me tivesse dado também alguma faculdade capaz de corrigi-la, creio poder concluir seguramente que tenho em mim os meios de conhecê-las com certeza.
22. E, primeiramente, não há dúvida de que tudo o que a natureza me ensina contém alguma verdade. Pois, por natureza considerada em geral, não entendo agora outra coisa senão o próprio Deus, ou a ordem e a disposição que Deus estabeleceu nas coisas criadas. E, por minha natureza, em particular, não entendo outra coisa senão a complexão ou o conjunto de todas as coisas que Deus me deu.
23. Ora, nada há que esta natureza me ensine mais expressamente, nem mais sensivelmente do que o fato de que tenho um corpo que está mal disposto quando sinto dor, que tem necessidade de comer ou de beber, quando nutro os sentimentos de fome ou de sede, etc. E, portanto, não devo, de modo algum, duvidar que haja nisso alguma verdade.
24. A natureza me ensina, também, por esses sentimentos de dor, fome, sede, etc., que não somente estou alojado em meu corpo, como um piloto em seu navio, mas que, além disso, lhe estou conjugado muito estreitamente e de tal modo confundido e misturado, que componho com ele um único todo. Pois, se assim não fosse, quando meu corpo é ferido não sentiria por isso dor alguma, eu que não sou senão uma coisa pensante, e apenas perceberia esse ferimento pelo entendimento, como o piloto percebe pela vista se algo se rompe em seu navio; e quando meu corpo tem necessidade de beber ou de comer, simplesmente perceberia isto mesmo, sem disso ser advertido por sentimentos confusos de fome e de sede. Pois, com efeito, todos esses sentimentos de fome, de sede, de dor, etc., nada são exceto maneiras confusas de pensar que provêm e dependem da união e como que da mistura entre o espírito e o corpo.
25. Além disso, a natureza me ensina que muitos outros corpos existem em torno do meu, entre os quais devo procurar uns e fugir de outros. E, certamente, do fato de que sinto diferentes sortes de cores, de odores, de sabores, de sons, de calor e de dureza, etc., concluo, com segurança, que há nos corpos, de onde procedem todas essas diversas percepções dos sentidos, algumas variedades que lhes correspondem, embora essas variedades talvez não lhes sejam efetivamente
semelhantes. E, também, do fato de que, entre essas diversas percepções dos sentidos, umas me são agradáveis e outras desagradáveis, posso tirar uma consequência completamente certa, isto é, que meu corpo (ou, antes, eu mesmo por inteiro, na medida em que sou composto do corpo e da alma) pode receber diversas comodidades ou incomodidades dos outros corpos que o circundam.
26. Mas há muitas outras coisas que parece-me terem sido ensinadas pela natureza, as quais, todavia, não recebi verdadeiramente dela, mas que se introduziram em meu espírito por certo costume que tenho de julgar inconsideradamente as coisas; e, assim, pode ocorrer facilmente que contenham alguma falsidade. Como, por exemplo, a opinião que tenho segundo a qual todo espaço, no qual nada há que se mova e cause impressão em meus sentidos, é vazio; que, em um corpo que é quente, há alguma coisa de semelhante à ideia do calor que existe em mim; que, em um corpo branco ou negro, há a mesma brancura ou negrume que sinto; que em um corpo amargo ou doce, há o mesmo gosto ou mesmo sabor e assim por diante; que os astros e as torres, e todos os outros corpos distantes, têm a mesma figura e grandeza que parecem ter de longe aos nossos olhos, etc.
27. Mas, a fim de que nada haja nisso que eu não conceba distintamente, devo definir com precisão o que propriamente entendo quando digo que a natureza me ensina algo. Pois tomo aqui a natureza numa significação muito mais limitada do que quando a denomino conjunto ou complexão de todas as coisas que Deus me deu; visto que esse conjunto ou complexão compreende muitas coisas que pertencem apenas ao espírito, das quais não pretendo falar aqui, ao falar da natureza: como, por exemplo, a noção que tenho desta verdade, de que aquilo que foi uma vez feito já não pode de modo algum deixar de ter sido feito, e uma infinidade de outras semelhantes que conheço pela luz natural, sem a ajuda do corpo, e que compreende também muitas outras que pertencem apenas ao corpo e que aqui não mais estão incluídas sob o nome de natureza: como a qualidade que ele tem de ser pesado, e várias outras semelhantes, das quais não falo tampouco, mas somente das coisas que Deus me deu, como sendo composto de espírito e de corpo. Ora, essa natureza me ensina realmente a fugir das coisas que causam em mim o sentimento da dor e a dirigir-me para aquelas que me comunicam algum sentimento de prazer; mas não vejo que, além disso, ela me ensine que dessas diversas percepções dos sentidos devêssemos jamais concluir algo a respeito das coisas que existem fora de nós, sem que o espírito as tenha examinado cuidadosa e maduramente. Pois é, ao que me parece, somente ao espírito, e não ao composto de espírito e corpo, que compete conhecer a verdade dessas coisas.
28. Assim, ainda que uma estrela não cause em meus olhos mais impressão do que o fogo de uma vela, não há, todavia, em mim nenhuma faculdade real ou natural que me leve a acreditar que ela não é maior do que esse fogo, mas que assim o julguei desde meus primeiros anos sem nenhum fundamento razoável. E, conquanto, ao me aproximar do fogo, sinta calor e, mesmo, sofra dor, aproximando-me perto demais, não há, todavia, nenhuma razão que me possa persuadir de que haja no fogo alguma coisa de semelhante a esse calor, assimbcomo a essa dor; mas tenho somente razão para acreditar que há alguma coisa nele, qualquer que seja, que provoca em mim estes sentimentos de calor ou de dor.
29. Do mesmo modo, também, embora haja espaços nos quais não encontro nada que provoque e que mova meus sentidos, não devo concluir daí que esses espaços não contêm em si nenhum corpo; mas vejo que, tanto nisso como em várias outras coisas semelhantes, acostumei-me a perverter e a confundir a ordem da natureza, porque, tendo estes sentimentos ou percepções dos sentidos sido postos em mim apenas para significar ao meu espírito que coisas são convenientes ou nocivas ao composto de que é parte, e sendo até aí bastante claras e bastante distintas, sirvo-me delas, no entanto, como se fossem regras muito certas, pelas quais possa conhecer imediatamente a essência e a natureza dos corpos que existem fora de mim, da qual, todavia, nada me podem ensinar senão algo muito confuso e obscuro.
30 Mas acima já examinei suficientemente como, não obstante a soberana bondade de Deus, ocorre que haja falsidade nos juízos que formulo dessa maneira. Somente ainda se apresenta aqui uma dificuldade relativa às coisas que a natureza me ensina que devem ser seguidas ou evitadas e, também no que concerne aos sentimentos interiores que ela pôs em mim; pois parece-me ter reparado nelas algumas vezes a existência do erro e, assim, que sou diretamente enganado por minha natureza. Como, por exemplo, o gosto agradável de algum alimento ao qual se tenha misturado veneno pode convidar-me a tomar este veneno e, assim, me enganar. É verdade, todavia, que Disto a natureza pode ser escusada, pois ela me leva somente a desejar o alimento no qual encontro um sabor agradável, e não a desejar o veneno, que lhe é desconhecido; de maneira que disso não posso concluir outra coisa senão que minha natureza não conhece inteira e universalmente todas as coisas: do que, certamente, não há que espantar, posto que o homem, sendo de uma natureza finita, não pode também ter senão um conhecimento de uma perfeição limitada.
31. Mas nós nos enganamos também bastante frequentemente mesmo nas coisas às quais somos diretamente impelidos pela natureza, como acontece com os doentes, quando desejam beber ou comer coisas que os podem prejudicar. Dir-se-á talvez aqui que a causa de se enganarem eles é que sua natureza é corrompida; mas isso não afasta a dificuldade, porque um homem doente não é menos verdadeiramente criatura de Deus do que um homem que goza de plena saúde; e, portanto, repugna tanto à bondade de Deus que ele tenha uma natureza enganadora e falível quanto o outro. E como um relógio composto de rodas e contrapesos não observa menos exatamente todas as leis da natureza quando é mal feito, e quando não mostra bem as horas, do que quando satisfaz inteiramente ao desejo do artífice; da mesma maneira também, se considero o corpo do homem como uma máquina, de tal modo construída e composta de ossos, nervos, músculos, veias, sangue e pele que, mesmo que não houvesse nele nenhum espírito, não deixaria de se mover de todas as mesmas maneiras que faz presentemente, quando não se move pela direção de sua vontade, nem, por conseguinte, pela ajuda do espírito, mas somente pela disposição de seus órgãos, reconheço facilmente que seria tão natural a este corpo, sendo, por exemplo, hidrópico, sofrer a secura da garganta que costuma significar ao espírito o sentimento da sede, e dispor-se por esta secura a mover seus nervos e suas outrasvpartes da forma requerida para beber e assim aumentar seu mal e prejudicar-se a si mesmo, quanto lhe é natural, quando não tem nenhuma indisposição, ser levado a beber para sua utilidade por semelhante secura da garganta. E, ainda que, no concernente ao uso ao qual o relógio foi destinado por seu artífice, eu possa dizer que ele se desvia de sua natureza quando não marca bem as horas; e que, do mesmo modo, considerando a máquina do corpo humano como formada por Deus para ter em si todos os movimentos que costumeiramente estão aí, eu tenha motivo de pensar que ela não segue a ordem de sua natureza quando agarganta está seca e que beber prejudica-lhe a conservação; reconheço, todavia, que este último modo de explicar a natureza é muito diferente do outro. Pois esta não é outra coisa senão uma simples denominação, a qual depende inteiramente do meu pensamento, que compara um homem doente e um relógio mal feito com a ideia que tenho de um homem são e de um relógio bem feito, e a qual não significa nada que se encontre na coisa da qual ela é dita; ao passo que, pela outra maneira de explicar a natureza, entendo algo que se encontra verdadeiramente nas coisas e, portanto, não deixa de ter alguma verdade.
32. Mas, certamente, embora em relação ao corpo hidrópico trata-se apenas de uma denominação exterior, quando se diz que sua natureza está corrompida, pelo fato de que, sem ter necessidade de beber, não deixa de ter a garganta seca e árida; todavia, com respeito à totalidade do composto, isto é, do espírito ou da alma unida a este corpo, não se trata de pura denominação, mas, antes, de verdadeiro erro da natureza, pelo fato de ter sede, quando lhe é muito nocivo o beber; e, portanto, resta ainda examinar como a bondade de Deus não impede que a natureza do homem, tomada desse modo, seja falível e enganadora.
33. Para começar, pois, este exame, noto aqui, primeiramente, que há grande diferença entre espírito e corpo, pelo fato de ser o corpo, por sua própria natureza, sempre divisível e o espírito inteiramente indivisível. Pois, com efeito, quando considero meu espírito, isto é, eu mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa que pensa, não posso aí distinguir partes algumas, mas me concebo como uma coisa única e inteira. E, conquanto, o espírito todo pareça estar unido ao corpo todo, todavia um pé, um braço ou qualquer outra parte estando separada do meu corpo, é certo que nem por isso haverá aí algo de subtraído a meu espírito. E as faculdades de querer, sentir, conceber, etc., não podem propriamente ser chamadas suas partes: pois o mesmo espírito emprega-se todo em querer e também todo em sentir, em conceber, etc. Mas ocorre exatamente o contrário com as coisas corpóreas ou extensas: pois não há uma sequer que eu não faça facilmente em pedaços por meu pensamento, que meu espírito não divida mui facilmente em muitas partes e, por conseguinte, que eu não reconheça ser divisível. E isso bastaria para ensinar-me que o espírito ou a alma do homem é inteiramente diferente do corpo, se já não o tivesse suficientemente aprendido alhures.
34. Noto também que o espírito não recebe imediatamente a impressão de todas as partes do corpo, mas somente do cérebro, ou talvez mesmo de uma de suas menores partes, a saber, aquela onde se exerce a faculdade que chamam o senso comum, a qual, todas as vezes que está disposta da mesma maneira, faz o espírito sentir a mesma coisa, embora as outras partes do corpo possam estar diversamente dispostas, como o testemunha uma infinidade de experiências, que aqui não é necessário relatar.
35. Noto, além disso, que a natureza do corpo é tal que nenhuma de suas partes pode ser movida por outra parte um pouco distanciada, que não possa sê-lo também da mesma forma por cada uma das partes que estão entre as duas, ainda que esta parte mais distante não aja de modo algum. Como, por exemplo, a corda ABCD que está inteiramente tensa, se chegarmos a puxar e mexer a última parte D, a primeira A não se mexerá de maneira diferente da que poderíamos fazê-la mexer-se, se puxássemos uma das partes médias B ou C, e a última D, no entanto, permanecesse imóvel. E, da mesma maneira, quando sinto uma dor no pé, a medicina me ensina que esse sentimento se comunica por meio de nervos dispersos no pé, que se acham estendidos como cordas desde esse lugar até o cérebro, quando eles são puxados no pé, puxam também, ao mesmo tempo, o lugar do cérebro de onde provêm e onde chegam, e aí excitam certo movimento que a natureza instituiu para fazer sentir dor ao espírito, como se essa dor estivesse no pé. Mas, já que esses nervos devem passar pela perna, pela coxa, pelos rins, pelas costas e pelo pescoço, para estender-se desde os pés até o cérebro, pode ocorrer que, embora suas extremidades que se acham no pé não sejam movidas, mas somente algumas de suas partes que passam pelos rins ou pelo pescoço, isso excite, não obstante, os mesmos movimentos no cérebro que poderiam nele ser excitados por um ferimento recebido no pé, em decorrência do que será necessário que o espírito sinta no pé a mesma dor que sentiria se aí tivesse recebido um ferimento. E cumpre julgar algo semelhante a respeito de todas as outras percepções de nossos sentidos.
36. Enfim, noto que, como de todos os movimentos que se verificam na parte do cérebro do qual o espírito recebe imediatamente a impressão, cada um causa apenas certo sentimento, nada se pode desejar nem imaginar nisso de melhor, senão que esse movimento faça o espírito sentir, entre todos os sentimentos que é capaz de causar, aquele que é mais próprio e mais ordinariamente útil à conservação do corpo humano quando goza de plena saúde. Ora, a experiência nos leva a conhecer que todos os sentimentos que a natureza nos deu são tais como acabo de dizer; e, portanto, nada se encontra neles que não torne patentes o poder e a bondade de Deus, que os produziu.
37. Assim, por exemplo, quando os nervos que estão no pé são movidos fortemente, e mais do que comumente, seu movimento, passando pela medula da espinha dorsal até o cérebro, provoca uma impressão no espírito que lhe faz sentir algo, isto é, dor, como estando no pé, pela qual o espírito é advertido e excitado a fazer o possível para afugentar sua causa, como muito perigosa e nociva para o pé.
38. É verdade que Deus podia estabelecer a natureza do homem de tal sorte que esse mesmo movimento no cérebro fizesse com que o espírito sentisse uma coisa inteiramente diferente: por exemplo, que o movimento se fizesse sentir a si mesmo, ou na medida em que está no cérebro, ou na medida em que está no pé, ou ainda na medida em que situado em qualquer outro lugar entre o pé e o cérebro, ou, enfim, qualquer outra coisa, tal como ela possa ser; mas nada disso teria contribuído tão bem para a conservação do corpo quanto aquilo que lhe faz sentir.
39. Da mesma maneira, quando temos necessidade de beber, nasce daí certabsecura na garganta que move seus nervos e, por intermédio deles, as partes interiores do cérebro; e esse movimento faz com que o espírito experimente o sentimento da sede porque, nessa ocasião, nada há que nos seja mais útil do que saber que temos necessidade de beber, para a conservação da saúde; e assim quanto aos outros.
40. Donde é inteiramente manifesto que, não obstante a soberana bondade de Deus, a natureza do homem, enquanto composto do espírito e do corpo, não pode deixar de ser, algumas vezes, falível e enganadora.
41. Pois, se há alguma causa que excite, não no pé, mas em qualquer uma das partes do nervo que está tendido desde o pé até o cérebro, ou mesmo no cérebro, o mesmo movimento que se faz ordinariamente quando o pé está mal disposto, sentir-se-á a dor como se ela estivesse no pé e o sentido será naturalmente enganado; porque o mesmo movimento no cérebro não podendo causar no espírito senão o mesmo sentimento e este sentimento sendo muito mais frequentemente excitado por uma causa que fere o pé, do que por alguma outra que esteja alhures, é bem mais razoável que ele leve ao espírito a dor do pé do que a dor de alguma outra parte. E, embora a secura da garganta nem sempre provenha, como de ordinário, do fato de que beber é necessário para a saúde do corpo, mas algumas vezes de uma causa inteiramente contrária, como experimentam os hidrópicos, todavia é muito melhor que ela engane neste caso do que se, ao contrário, ela enganasse sempre quando o corpo está bem disposto; e, assim, em relação às outras coisas.
42. E certamente essa consideração me serve muito, não somente para reconhecer todos os erros a que minha natureza está sujeita, mas também para evitá-los ou para corrigi-los mais facilmente: pois, sabendo que todos os meus sentidos me significam mais ordinariamente o verdadeiro do que o falso no tocante às coisas que se referem às comodidades ou incomodidades do corpo, e podendo quase sempre me servir de vários dentre eles para examinar uma mesma coisa e, além disso, podendo usar minha memória, para ligar e juntar os conhecimentos presentes aos passados, e meu entendimento, que já descobriu todas as causas de meus erros, não devo temer doravante que se encontre falsidade nas coisas que me são mais ordinariamente representadas pelos meus sentidos. E devo rejeitar todas as dúvidas desses dias passados como hiperbólicas e ridículas, particularmente esta incerteza tão geral no que diz respeito ao sono que eu não podia distinguir da vigília: pois agora encontro uma diferença muito notável no fato de que nossa memória não pode jamais ligar e juntar nossos sonhos uns com os outros e com toda a sequencia de nossa vida, assim como costuma juntar as coisas que nos acontecem quando despertos. E, com efeito, se alguém, quando eu estou acordado, me aparecesse de súbito e desaparecesse da mesma maneira, como fazem as imagens que vejo ao dormir, de modo que eu não pudesse notar nem de onde viesse, nem para onde fosse, não seria sem razão que eu consideraria mais um espectro ou um fantasma formado no meu cérebro e semelhante àqueles que aí se formam quando durmo do que um verdadeiro homem. Mas quando percebo coisas das quais conheço distintamente o lugar de onde vêm e aquele onde estão, e o tempo no qual elas me aparecem e quando, sem nenhuma interrupção, posso ligar o sentimento que delas tenho com a sequencia do resto de minha vida, estou inteiramente certo de que as percebo em vigília e de modo algum em sonho. E não devo de maneira alguma duvidar da verdade dessas coisas se, depois de haver convocado todos os meus sentidos, minha memória e meu entendimento para examiná-las, nada me for apresentado por algum deles que esteja em oposição com o que me for apresentado pelos outros. Pois, do fato de que Deus não é enganador segue-se necessariamente que nisso não sou enganado.
43. Mas, como a necessidade dos afazeres nos obriga amiúde a nos determinar antes que tenhamos tido o lazer de examiná-las tão cuidadosamente, é preciso confessar que a vida do homem está sujeita a falhar muito frequentemente nas coisas particulares; e, enfim, é preciso reconhecer a imperfeição e a fraqueza de nossa natureza. Na sexta meditação, René Descartes conclui que a existência de Deus garante a verdade das nossas ideias claras e distintas, e que o corpo é uma realidade distinta da mente, embora interligados. Ele refuta as dúvidas metódicas da primeira meditação, mostrando que a mente e o corpo são substâncias distintas, mas interconectadas. Descartes argumenta que a ideia de um Deus perfeito, que é uma ideia clara e distinta, só pode ter sido introduzida na mente por uma causa que possui, em si, a perfeição de Deus. Dualismo cartesiano: A conclusão sobre a existência de Deus permite a Descartes provar a existência do mundo exterior, pois se Deus existe, ele não seria um enganador e, portanto, as nossas percepções são, em geral, verdadeiras. Interação entre mente e corpo:Descartes reconhece a interação entre a mente e o corpo, especialmente no caso da glândula pineal. A sexta meditação é, portanto, um ponto crucial na construção do sistema cartesiano, que refuta o escepticismo radical e estabelece os fundamentos para o conhecimento da realidade.
----------------------------------- Descartes classificava as ideias em três tipos: Ideias INATAS: São ideias inerentes à nossa razão e não dependem da experiência sensorial, como a ideia de Deus. Ideias FACTÍCIAS: São ideias criadas pela imaginação a partir da combinação de elementos de ideias ADVENTÍCIAS. Ideias adventícias: São as ideias que provêm diretamente dos sentidos. ---------------------------------------- O plano cartesiano é um sistema de referência matemático formado por dois eixos perpendiculares (um horizontal e outro vertical), que se intersecam em um ponto chamado origem. Estes eixos, geralmente denotados como eixo X (horizontal) e eixo Y (vertical), permitem localizar qualquer ponto no plano utilizando um par de coordenadas (x, y). ------------------------------------ Uma "CAUSA EMINENTEMENTE" que contém a essência do efeito de forma mais completa e perfeita, como um molde que contém a forma de um objeto. Essa noção de causa é central na filosofia de Descartes, especialmente em suas reflexões sobre a relação entre causa e efeito, e entre o mundo das ideias e o mundo das coisas. Exemplo: Imagine que você tem uma ideia de um relógio. Essa ideia é o efeito. A causa "eminentemente" dessa ideia seria o próprio relógio, que possui as qualidades e características que a ideia representa de forma mais completa e real. -------------------------------------- A "luz natural" refere-se à capacidade natural da mente humana de perceber e entender verdades claras e distintas, independentemente de qualquer experiência sensorial ou de inferências complexas. Intuição e percepção: A luz natural é a fonte da intuição, a capacidade de perceber de forma imediata e clara a verdade. -------------------------------- Ha duas Realidades no ser: Res Cogitans: - Representa a mente, a consciência, o pensamento, a razão e as ideias. É a essência do ser humano, o que o distingue do mundo material. Res Extensa: - Corresponde ao mundo material, à matéria, ao corpo. É o que pode ser conhecido e sentido, mas não é considerado a essência do ser humano por Descartes. ---------------------------------------------- GLÂNDULA PINEAL: Descartes localiza o ponto de interação entre a mente e o corpo na glândula pineal, no cérebro. A glândula atua como um ponto de conexão entre a mente imaterial e o corpo físico, permitindo que a mente exerça influência sobre o corpo. --------------------------------------- Descartes Renée
Enviado por Ton Poesia em 18/05/2025
Alterado em 03/06/2025 Comentários
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